Abuso Sexual Infantil e Transtornos Alimentares
Refletindo sobre a relação intrínseca entre abuso sexual infantil e transtornos alimentares, que se agravaram durante a pandemia, destacando a falta de limites e o impacto emocional.
ABUSO SEXUAL INFANTIL E TRANSTORNOS ALIMENTARES
INTRODUÇÃO:
Estou propondo uma reflexão sobre um tema muito difícil e muito árduo: o abuso sexual infantil e um de seus principais desdobramentos, os transtornos alimentares. Infelizmente durante e após a pandemia, ambos se agravaram bastante, também como um reflexo de tantas faltas afetivas. E o maior convívio familiar imposto pela necessidade de nos mantermos em casa também colaborou para o aumento dos casos de abuso sexual infantil, da mesma forma como contribuiu para o aumento dos transtornos alimentares em geral, tanto da obesidade, quanto da anorexia e da bulimia.
Muito convívio, muito afeto, muitos conflitos, muitas emoções juntas e misturadas, criando terreno fértil para os excessos. Onde tem excesso tem problema! É a pandemia do novo coronavírus trazendo a pergunta que nos colocamos hoje como tema para reflexão: (?) Haverá alguma relação entre abuso sexual infantil e transtornos alimentares? Sim, há uma relação intrínseca entre as duas formas do sujeito se relacionar com os limites.
Na minha prática clínica eu verifico que esta relação está muito presente. Crianças ou adolescentes que passaram por situações de abuso sexual ficam com alguma “dívida” e tentam pagá-la se punindo, por exemplo, através dos infortúnios dos transtornos alimentares.
Para nosso estudo relacional entre abuso sexual infantil e transtornos alimentares eu proponho que iniciemos nossa reflexão pelo entendimento do abuso sexual infantil, suas raízes e desdobramentos enquanto baluarte da falta de limites. E em seguida trataremos o entrelaçamento deste com os transtornos alimentares.
PARTE I - Abusos e suas marcas
Gosto de começar minhas reflexões pelas definições dos termos que me proponho a estudar. Definir abuso sexual é uma tarefa polêmica que exige uma compreensão ampla de um problema com grandes dimensões na atualidade. Encontramos grandes dificuldades quando tratamos a questão do incesto e uma delas é a definição deste conceito. De acordo com o Novo Dicionário Brasileiro Melhoramentos, em sua 5a edição, incesto é “a união sexual entre parentes (consangüíneos ou afins), condenada pela lei, pela moral e pela religião”.
O fenômeno do abuso sexual é designado por diferentes termos como: violência sexual, agressão sexual, vitimização sexual, maus-tratos, crime sexual, e muitos deles utilizados indevidamente como sinônimos. Abuso sexual infantil é uma forma de violência sexual contra a criança ou o adolescente. A etiologia e os fatores determinantes do abuso sexual têm implicações diversas. Envolvem questões culturais (como é o caso do incesto) e de relacionamento, o que dificulta a notificação e perpetua o silêncio no qual as crianças se vêem enredadas. Este não é um fenômeno que esteja restrito a uma determinada classe social, como já se quis acreditar, mas bem ao contrário, está presente em todas as esferas do social. No abuso, o agressor pode atuar de três formas diferentes: através da violência física, da coação ou ainda abusando da confiança da criança. Normalmente faz parte da família ou é responsável pela criança e, com certeza, pessoa conhecida, que tem condições de estabelecer uma relação afetiva com a criança sem despertar a desconfiança dos demais membros da família, infringindo as leis do convívio social.
O incesto é a forma de abuso sexual mais polêmica e socialmente mais repugnante, por isso acredito ser importante introduzir o conceito para melhor compreensão do universo que estamos tratando. O abuso incestuoso rompe com o contrato social quando estabelece qualquer relação de caráter sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, entre um adolescente e uma criança ou ainda entre adolescentes; quando existe um laço familiar, direto ou não, ou uma mera relação de responsabilidade.
O abuso sexual pode trazer para o sujeito conseqüências orgânicas e psicológicas decorrentes da falta de limites presente nesse ato que ocasionam, com freqüência, algum tipo de transtorno alimentar nas crianças e nos adolescentes, sobretudo nos momentos de grandes desafios presentes na entrada da adolescência ou na entrada da vida adulta.
Dentre as primeiras, as mais encontradas são as lesões de genitália ou ânus, gestação precoce, doenças sexualmente transmissíveis e muitas outras seqüelas. Contudo, nem sempre o abuso pode ser detectado pelo exame físico. Com exceção de ataques sexuais com violência, praticados por desconhecidos, a maioria dos casos de abuso sexual ocorre de forma repetitiva, dentro de casa, sem violência e sem evidências físicas. Já com relação as consequências psicológicas os danos são inúmeros e a instalação de transtornos alimentares é bastante comum, entre outros danos também muito desastrosos.
As meninas são as vítimas mais freqüentes, sendo que raramente seus algozes utilizam a violência física, onde só 15% dos casos deixam sinais de abuso físico. E dessa forma, aparentemente, inofensiva, vai se estabelecendo um pacto de silêncio ou muro de silêncio¨, que se forma a partir do sentimento de vergonha ou do medo de desestruturar a família, apontando para a contradição existente entre o papel de proteção esperado da família e a violência que se estabelece quando é violado o mais sagrado dos tabus, que é a interdição do incesto. Os maiores criminosos podem ter uma excelente aparência e muitas vezes, mesmo os pais incestuosos, podem ser muito afetivos ou simpáticos. Toda violência característica dos crimes sexuais fica envolvida num clima secreto, onde impera o silêncio, que dá origem ao pacto invisível, como prefiro chamar o pacto que se forma entre a criança, o abusador e as pessoas que eventualmente tomam conhecimento do abuso e não impedem a sua reincidência.
Em nosso país temos muita ¨dificuldade no cumprimento das leis, onde as transgressões geralmente são aceitas sem grandes hesitações, criando terreno fértil para perpetuação de atos abusivos. Às transgressões corresponde um silêncio que se faz acompanhar da impunidade característica do descumprimento das leis.
Quando estudamos o incesto na vertente psicanalítica o eixo situa-se em torno da questão do tabu do incesto e de sua importância para a estruturação psíquica do ser humano. (?) Mas o que faz com que alguma coisa seja considerada tabu? Em 1913, Freud, em “Totem e Tabu, propõe a hipótese de que numa pequena comunidade em tempos passados teria acontecido uma experiência muito elucidativa da dinâmica parental. Esta comunidade era chefiada por um pai violento e ciumento, que mantinha todas as mulheres guardadas para ele e expulsava da horda os filhos adolescentes. Sendo assim, os filhos expulsos, que não estavam de acordo com esta determinação, reuniram-se em bando, mataram e comeram o pai. Ao devorarem o pai, cada um dos irmãos realizou seu desejo de identificação com ele. Mesmo que tenham comido o pai, que se colocava no meio de suas necessidades e desejos sexuais, os filhos também o amavam e admiravam. Depois que o pai morreu eles entraram em contato com o remorso e a culpa. Aquilo que o pai os impedia, eles impuseram a si próprios, erigindo uma interdição psíquica que equivalia à obediência aos desejos do pai morto. Com a morte do pai, cada irmão tornou-se rival dos demais pela posse de todas as mulheres. Uma luta entre os irmãos teria destruído sua nova organização. Para se preservarem, instituíram a proibição do incesto, abrindo mão das mulheres que desejavam. Matando o pai instauraram o sistema jurídico que define ¨o que pode¨ e ¨o que não pode¨!!! Nós nos organizamos em torno da lei, do interdito, do limite ou do ¨não¨.
Tratando do tabu do incesto e sua transgressão, precisamos lembrar que o tabu é estruturante para toda e qualquer sociedade, como nos mostra Freud em “O Mal-Estar na Civilização”: “Os preceitos do tabu constituíram o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’ “. Freud utilizou um mito grego, Édipo, que todos conhecemos e dispensa explanação, para dar conta dos principais fundamentos da teoria psicanalítica. E o tema reaparece, num conhecido conto de fadas, “Pele de Asno”, do século XVII, que pretendo trazer aqui, ilustrando a crueza do incesto e a possibilidade de reconstrução que pode estar presente na superação do silêncio. Trago uma versão do conto de Perrault, que fala de um rei poderoso, feliz com sua amada esposa e filha e que possuía um asno, que ao invés de sujar sua palha, deixava no forro um punhado de moedas de ouro. Contudo, um dia a rainha adoeceu subitamente. Sentindo que ia morrer, disse ao esposo: “Só se case novamente quando encontrar uma princesa mais bela e mais virtuosa do que eu. Prometa-me”. A rainha tinha exigido tal juramento por não acreditar que houvesse, no mundo, alguém capaz de se igualar a ela e assim estaria segura de que o rei jamais voltaria a se casar. Passados uns meses, já estava o rei à procura de uma esposa que estivesse de acordo com
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juramento. Um dia, o monarca começou a perceber que sua filha não apenas era extraordinariamente bela, como sua inteligência e encanto ultrapassavam os da rainha, sua mãe. Isso despertou no rei um amor tão violento, que ele não pode escondê-lo da menina e declarou-lhe que havia decidido desposá-la. Ao ouvir tal pedido, a princesa ficou desnorteada. Foi procurar sua madrinha, uma fada para ajudá-la. Depois de muitas tentativas de pedidos diferentes para afastar a possibilidade da união em vão, a madrinha lhe disse para exigir do pai o que havia de mais valioso no reino: a pele do asno das moedas de ouro. O pai apaixonado mandou sacrificar o animal e deu a pele a sua filha, que ficou desesperada. A fada sugeriu-lhe que fugisse e se escondesse na pele do asno para não ser reconhecida.
A princesa seguiu caminhando até que conseguiu empregar-se no curral de uma fazenda, porque sua aparência era asquerosa. Aos domingos, quando podia descansar um pouco, trancava-se no quarto, libertava-se da pele, abria sua mala e se vestia com seus belos vestidos. A fazenda onde Pele de Asno trabalhava pertencia a um rei poderoso, que tinha um filho. A moça, um dia, o viu e se apaixonou por ele. Numa tarde de domingo, o príncipe passava perto do quarto de Pele de Asno e, ao olhar pela fechadura, viu uma jovem belíssima, usando um vestido muito rico. Ficou totalmente apaixonado pela moça. O príncipe voltou ao palácio e procurou saber quem morava naquele quarto e foi informado de que se tratava de Pele de Asno, um “bicho nojento”. Ele implorou apenas uma coisa: que Pele de Asno lhe fizesse um bolo, sem demora. Ao saber do pedido, a moça foi para o quarto, tirou a pele, lavou as mãos e fez o tão desejado bolo. Juntou à massa um anel de esmeralda, para que o príncipe o encontrasse.
O jovem apaixonado comeu todo o bolo e ficou satisfeito ao encontrar o anel. Porém, continuou triste e fraco. Os médicos disseram que o rapaz sofria de mal de amor. Resolveram, então, que o príncipe devia se casar. Este, ao saber da decisão dos médicos, afirmou que somente se casaria com a moça em cujo dedo aquele anel coubesse. Todas as jovens do reino foram chamadas para experimentar o anel. Somente Pele de Asno ainda não havia aparecido. O príncipe, desanimado, pediu que a chamassem. Antes de ir ao palácio real experimentar o anel, a princesa vestiu, por debaixo da pele de asno, um de seus lindos vestidos. No palácio, o príncipe pediu-lhe que estendesse a mão, para colocar-lhe a jóia, em cujos dedos o anel de esmeralda se ajustou com perfeição. Neste instante, a pele de asno caiu no chão, e a linda princesa apareceu.
O rei e a rainha ficaram muito felizes e convidaram os reis de todos os lugares para o casamento do filho. O mais rico e poderoso de todos os convidados era o pai da noiva, que, ao encontrar a filha, e, já curado de sua paixão, abraçou-a e disse estar muito contente em reencontrá-la. Neste momento apareceu a madrinha da princesa e contou a todos a história de Pele de Asno.”
Tal como Édipo precisou expiar suas culpas, furando os olhos e morrendo numa vida errante, também a menina ameaçada de incesto pelo pai foge e se esconde para não sucumbir a esse assédio. Como este exemplo ilustra muito bem, o conflito edípico pode ¨encontrar¨ solução através dos contos de fada. Sabemos que para determinados povos algumas relações são proibidas enquanto para outros a mesma relação não é considerada incesto, podendo este estar localizado em outra relação de parentesco. O que entendemos é que em todas as sociedades há algum tipo de interdição, considerado um conceito fundante da cultura.
A transgressão pode ser pensada como a ultrapassagem dos limites históricos de uma experiência. Toda interdição pressupõe sua transgressão, que por sua vez já está contida no próprio conceito de tabu. Em última análise, todas as transgressões estão referidas ao incesto, ou pelo menos às relações triangulares que são atravessadas pela angústia de castração, onde a questão da falta está presente. A partir da constatação desta perda é que o sujeito passa a desejar outros objetos amorosos, podendo então contribuir para a construção da cultura. Na visão psicanalítica, vale lembrar a necessidade da instituição de uma barreira ao gozo sem limite como condição de existência da cultura, pois, como afirma Antônio Quinet, a civilização exige renúncia pulsional.
O abuso sexual é uma situação de ultrapassagem de limites, visando substituir as vantagens dos nossos critérios culturais pela busca do gozo, que não pode esperar, porque, encontramos no mundo de hoje, a presença de ideais narcísicos ilusórios e tirânicos que funcionam de modo a inibir e a bloquear invenções de novos projetos porque fecham o caminho da libido, fixando-a numa relação de fascínio a um só objeto psíquico: o próprio eu e seus prolongamentos.
O pressuposto básico para analisarmos a questão do abuso sexual é que a criança ou o adolescente nunca são culpados, uma vez que na transgressão da lei que proíbe o incesto, o que acontece é uma submissão ao mais forte, onde a criança abusada sexualmente deixa de ser sujeito e passa a ser submetida. No abuso sexual o que é proibido são as práticas sexuais com crianças “inocentes” que não tem possibilidade de compreensão e que não tem introjetada, por força da cultura, essa proibição.
Sandor Ferenczi em seu texto “Confusão de língua entre crianças e adultos”, de 1933, define o abuso sexual como a resposta do adulto com paixão a um pedido de ternura feito pela criança. A criança que sofreu esse trauma desestruturante tem dificuldade de reorganizar-se internamente. Para esse autor, o desmentido é o que torna o trauma desestruturante. E o trauma seria o somatório dos ingredientes, por exemplo, de um abuso sexual, tal como a sedução de uma criança por um adulto, e a correspondente confusão da linguagem da ternura com a linguagem da paixão; acrescidos do desmentido, que o tornaria desestruturante. Esse autor não acredita que o trauma esteja na violência sexual em si, mas muito mais no a posteriori que em geral desacredita a criança, inscrevendo pela negação e pelo silêncio, a vivência do trauma desestruturante. Ferenczi inaugura a possibilidade de se pensar a questão do abuso sexual como uma resposta do adulto com paixão a um pedido infantil de ternura. Para ele, a ternura é vista como anterior à sexualidade genital e o adulto, autor de agressões sexuais, não reconhece no pedido da criança uma linguagem desprovida de sexualidade genital e entende aquela forma de expressão como uma forma de sedução da ordem do genital. O trauma se instaura no momento do desmentido, já que nesta visão o trauma é resultado do desmentido, que se torna portanto, o responsável pela desestruturação psíquica.
E quando tratamos a questão da verdade e da mentira cabe retomarmos a questão do desmentido. Para Ferenczi essa é a pior coisa que pode acontecer com quem viveu a experiência do abuso sexual. Se o sujeito é desmentido pelo adulto, como já vimos anteriormente, esse é o momento mais traumatizante, já que o autor atribui ao desmentido toda responsabilidade pelo trauma. O adulto que desacredita a criança ou o adolescente está roubando deles o direito de expressão. Quando acontece o desmentido o sujeito abusado fica completamente confuso, pois a pessoa de confiança não fez jus à escolha feita. A criança decodifica este procedimento se identificando com o agressor e assumindo o sentimento de culpa que caracteriza o abuso sexual, pois a criança precisa do adulto para ter sua fala e sua existência autorizada. Ao ser desmentida a criança corre o risco de aniquilamento ou despedaçamento psíquico porque o que está introjetado é a necessidade de acatar a intermediação do adulto.
PARTE II - O segredo, o silêncio e a culpa nos abusos sexuais e alimentares
A transgressão é protegida pelo segredo e torna-se parte integrante dele. O segredo do incesto impede a verbalização dos fatos para evitar que se pense sobre eles. A palavra deve funcionar como veículo do simbólico; daí a necessidade de o sujeito sair do simbólico gestual para o simbólico verbal que a linguagem nos permite. Uma das principais funções do adulto é introduzir a criança no universo do simbólico verbal, e é por isso que a criança ou o adolescente abusado tende a se identificar com o autor das agressões, ou seja, aquele que lhe dá passagem ao mundo simbólico da linguagem. Além deste processo identificatório, o próprio sofrimento tende a submeter a criança à lei do silêncio. Existe uma comunicação inconsciente entre abusador e abusado que comunica o caráter transgressor daquele ato.
O segredo ocupa um lugar importante quando tratamos do abuso sexual, por isso acredito ser interessante uma reflexão sobre
- indispensável silêncio presente também no setting psicanalítico, que é um silêncio de ordem distinta, mas está referido a uma mesma necessidade de proteção. Esse silêncio sobre o abuso refere-se sobretudo ao sofrimento de nossos clientes, e precisa estar ancorado na importância que esta forma de linguagem expressa. Como disse Macksud Khan em 1963, aspas ¨o silêncio é
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idioma principal de expressão e comunicação dos conflitos intrapsíquicos¨.(fecha aspas) É preciso saber ouvir o silêncio do paciente, sobretudo daqueles que sofrem com algum tipo de abuso, seja sexual ou alimentar. O silêncio presente na vergonha do abusado, no isolamento das anoréxicas, no comer escondido do obeso e nos vômitos escondidos das bulímicas está envolvendo um grande segredo, o segredo de ser descoberto e não estar preparado para esse momento.
O muro de silêncio, o pacto de silêncio ou o pacto invisível, como se queira denominar, é uma rede de fatores composta pela vergonha, pela quebra de limites, pelo medo de abalar as alianças familiares e provocar a desestruturação da família, comprometendo a preservação do núcleo familiar. A criança ou o adolescente teme entrar em contato com a ambigüidade presente entre o papel de proteção atribuído à família e a violência silenciosa que se estabelece, quando é violado o mais sagrado dos tabus, que é a interdição do incesto, como ficou claro no exemplo de Pele de Asno.
Quando uma criança revela uma situação de abuso, ela está rompendo com barreiras de silêncio, revelando segredos que faziam parte da sua relação doentia com alguém que a maltratava, mesmo que ela não tivesse consciência da transgressão. Esta revelação pode ter forte carga traumática e as conseqüências que a criança pode enfrentar são as mais diversas, da descrença ao
castigo. Uma das saídas encontradas pela criança ou pelo adolescente é o estabelecimento de uma relação doentia com o alimento, facilitando a instalação de transtornos alimentares. O sujeito abusado consciente das conseqüências dos fatos, pode ter medo de ser castigado, ou então, pela forte presença da culpa em função do possível prazer corporal/sexual experimentado, ele escolhe permanecer calado. A criança talvez precise começar a lembrar em condições toleráveis e seguras, ao mesmo tempo em que começa a esquecer um pouco, e a construir um aspecto não- abusado de sua personalidade.
A vergonha é filha da culpa e para a criança a possibilidade de experimentar prazer fica atrelada ao custo de seu desaparecimento como ser. A vergonha deixa marcas e esconde revelando, e apontando para necessidade de preservação da intimidade. A mola mestra da “compulsão à repetição” é a culpa, também muito presente na dinâmica dos Transtornos Alimentares, em função da necessidade do sujeito de se castigar quando se sente culpado, voltando a se empanturrar para se punir e assim sucessivamente. Na nossa sociedade judaico-cristã, quando nos sentimos culpados ¨acreditamos¨ que precisamos ser punidos…
No caso do obeso, podemos verificar que, quando o sujeito come exageradamente, inevitavelmente, ele entra em culpa e portanto, busca uma forma de se castigar, repetindo o mesmo comportamento, voltando a se exceder no comer. Formando-se assim o círculo vicioso que alimenta a repetição. Também presente na anorexia quando o sujeito é regido pela compulsão à repetir o comer nada, e ancorado na culpa, repete a mesma dinâmica,
estabelecendo o mesmo padrão invertido, o “não-comer” repetidamente para se punir. Ou ainda na bulimia, a tentativa de esconder a hiperfagia vomitando ou transbordando o possível excesso, o bulímico teme não ser capaz de detê-lo voluntariamente, e repete o mesmo comportamento: “empanturramento”, culpa, vômito (ou outros comportamentos compensatórios) e sentimentos de autopiedade, autocomiseração ou mesmo depressão, que o levam a outra crise de hiperfagia, reiniciando o processo. Sujeitos culpados buscam se castigar, seja qual for o motivo do excesso praticado, seja no âmbito dos afetos ou na alimentação.
A dinâmica psíquica da anoréxica se articula em torno da recusa, como consequência lógica desse funcionamento psíquico,
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sujeito recusa o outro, recusando o alimento (que vem do outro), que também é uma forma de negar/recusar o afeto contido no ato de se alimentar. Nessa dinâmica o alimento e a mãe são recusados. O fato de deixar de comer pode simbolizar a desistência da anoréxica pela mãe e também sua hostilidade em relação à função materna. A recusa pelo outro. O inconsciente quer se libertar da mãe devoradora, invasiva, superprotetora que nutre e protege demais, sempre tendendo para o excesso. Para tornar-se independente, a jovem decide não se nutrir mais desta mãe simbolizada pelo alimento e por não expressar seus temores e traumas infantis, prefere fechar a boca tanto para falar quanto, e sobretudo, para comer. E como afirma Lacan, “não é que a anoréxica nada coma, ela come o nada”.
Crianças ou adolescentes abusados sexualmente sentem-se muito culpados pelo prazer corporal que experimentam. Tentam dar um significado aquelas sensações, mas o sujeito não tem estrutura física e emocional para decodificar tudo que lhe está sendo imposto. Ele não tem condições de fazer frente aqueles apelos e se sente perdido. Na formação de sua subjetividade fica essa marca, esse vazio ou esse buraco, que se somam às falhas narcísicas , falhas relativas à formação do seu ego corporal. Com um ego corporal cravejado de “falhas básicas”, como diria Balint, não consegue desenvolver um ego psíquico suficientemente forte para aceitar os limites que a convivência humana exige. Muitas vezes lança mão da dor como forma de mostrar ao outro ou a si próprio que está vivo, como é o caso dos “empanturramentos”, das fomes contidas ou das auto-mutilações. E os transtornos alimentares tornam-se uma possibilidade para o sujeito se sentir vivo: “come demais” ou “não-come demais”.
Como o sujeito vai ter que lidar com essa falta, ele tenta “resolver” esta equação, através do que chamamos de “próteses psíquicas”, desenvolvendo maneiras de ser que possam ajudá-lo a atravessar esta falha. Uma tentativa de preenchimento inglória. Prótese é um componente artificial que tem por finalidade suprir necessidades e funções de indivíduos, sejam amputados, traumas ou deficiências físicas. É nesse sentido que a gordura pode atuar como uma prótese psíquica para o obeso, de caráter provisório, providencial, fruto das dificuldades na formação do ego. Por exemplo, o sujeito cria uma prótese psíquica e isso se evidencia em seu corpo, tornando-se um grande obeso.
As adições, em geral, são exemplos de criações de próteses psíquicas. São casos de ego corporal mal construído, como alguns casos de obesidade, toxicomania, alcoolismo ou vigorexia. Conhecemos muitos casos de pacientes bariátricos que não tratando clinicamente de forma adequada sua compulsão alimentar através da transferência, depois da cirurgia, trocam de compulsão, ou melhor, adotam novas próteses, como o álcool para os que se tornam alcóolicos ou as compras para os que se tornam compradores compulsivos. Gordura, álcool, hipertrofia muscular, drogas ou compras podem ser consideradas próteses psíquicas, uma vez que proporcionam um modo de funcionamento psíquico minimamente aceitável.
Quando há um descompasso nos processos de interações precoces ou uma maternagem desajustada podem incorrer no aparecimento de transtornos alimentares. Melhor dizendo, que haja transtorno é até esperado, mas por que um transtorno alimentar? A alimentação, dentre todas as funções básicas para nossa sobrevivência, desempenha um papel fundamental na constituição do que somos, uma vez que é a que mais concretamente representa a ideia de construção de um ser. Comer é incorporar algo, ou seja, fazer do alimento componente do corpo. Literalmente, a comida dá corpo ao ser. Assim, o ato de comer se torna indissociável da constituição tanto do corpo como do “ser” que o habita. Alimentar-se e constituir-se são, desta forma, um único processo. O laço entre afeto e alimento se desenvolve juntamente com o indivíduo: ele se inicia dentro do corpo materno, e se estabelece de fato a partir da amamentação, quando a criança, junto com o leite, recebe suas primeiras noções de afeto, que vão acompanhá-la em toda sua trajetória. Por isso afirmo que
- alimento é uma forma de afeto.
A contemporaneidade é marcada pelo peso dos excessos, expressos nas novas modalidades de sofrimento. A forma “clássica” de padecimento neurótico vem perdendo terreno para os “novos sintomas”, as doenças narcísicas onde se incluem os transtornos alimentares, que emergem como patologias do ato. O mal-estar atual se manifesta através de uma marca muda impressa no corpo, testemunha de um precário investimento libidinal nos primórdios da vida psíquica. O corpo funciona como uma expressão da dificuldade de chegar à palavra daquele que sofre de algum transtorno alimentar, evidenciando sua insuficiência na simbolização.
Algo da ordem simbólica não se desenvolve plenamente nestes indivíduos, mas não se trata de uma incapacidade de simbolização, mas de uma dificuldade em determinadas áreas para metaforizar e/ ou traduzir concreto e simbólico. O atravessamento do sujeito pela linguagem não se dá de forma completa, não possibilitando que o desejo se instaure, deixando-o aprisionado no gozo. O funcionamento psíquico fica, assim, atrelado às marcas necessariamente corporais que funcionam como continente, esboçando um limite sempre precário, que não permite ao sujeito fazer frente ao excesso, representado, por exemplo, pelo funcionamento compulsivo como “motor” do gozo mortífero.
Diante de situações complexas em que a incapacidade de representação psíquica se faz presente no setting analítico, o saber-fazer da psicanálise, como potência e movimento, nos remete a um enquadre clínico, em que as sutilezas do processo analítico vão dando contorno a uma práxis analítica pautada no sensível, o que não significa tocar no paciente, mas atribuir sensorialidade às palavras presentes no próprio setting psicanalítico.
O caso clínico de Bela, que apresentarei a seguir, corrobora essa visão, revelando a possibilidade de construção de uma pele psíquica da paciente, baseado na noção de regressão em psicanálise e favorecida pela transferência.
PARTE III - Concluindo com a leveza e a beleza de Bela
O caso clínico de Bela (nome fictício), de 30 anos, ilustra bem nossas hipóteses. Ela nos conta sua história: uma criança que até os 10 anos sofria abusos sexuais por parte daquele que ela aprendeu a chamar de avô. Bela não sabe identificar quando começaram os abusos, mas tudo indica que desde muito cedo, ainda bebê, suspeita essa confirmada pela mãe, pois acredita que ele se aproveitava da fama de gostar muito de crianças para se aproximar dela abusivamente. Por haver indícios de que os abusos teriam começado muito cedo, consideramos isso um agravante do caso, pois quanto mais cedo começam as práticas abusivas mais sérios e graves podem ser as conseqüências e os danos psíquicos para o sujeito.
Foi aos 10 anos que ela tomou coragem para dividir suas aflições e revelar sua dor e seu sofrimento a sua mãe através de uma “carta-confidencial”. O choque foi vivido de forma trágica por todos, pois a mãe de Bela depois de ler as confidências da filha, só
conseguiu reagir com a força da emoção, chorando e abraçando-a, repetindo inúmeras vezes que aquilo nunca mais voltaria a acontecer. A família ficou profundamente abalada, mas em nenhum momento colocou em questão a palavra de nossa paciente. Trata- se de uma família muito bem estruturada. Em nenhum momento Bela foi desacreditada por sua mãe ou por qualquer outro membro da família. Este foi um fator crucial no desenrolar de sua história, que pôde a partir de então desfrutar da cumplicidade, da solidariedade e do amor sincero e protetor de sua família, não tendo experimentado o dissabor de ser desacreditada. Moravam todos juntos numa casa grande, confortável e espaçosa e este homem foi afastado do convívio familiar assim que a denúncia foi feita por nossa paciente.
O pai de Bela precisou ser contido para não deflagrar um desastre ainda mais sério em decorrência da revelação de Bela, pois este aventou a hipótese de liquidar o agressor. A mãe de Bela a apoiou todo tempo, buscando sempre protegê-la de situações que a expusessem, seja no convívio familiar seja na escola ou junto aos amigos. Em função disso, a jovem conta que se sentia “superprotegida”, já que seus pais passaram a impor uma série de restrições à sua vida. Ela estava entrando numa fase em que começava a se colocar a necessidade de algumas liberações, mas seus pais prorrogaram o máximo que puderam essa flexibilização, pois havia sempre o fantasma de que o abusador pudesse rondar a casa familiar.
Bela chegou à adolescência com dificuldades para lidar com sua sexualidade, tendo tido sua primeira experiência sexual aos 13 anos. Ela reproduzia a falta de limite de seu abusador não impondo limites ao assédio do outro. Ela afirma que teve muita dificuldade de dizer não para os rapazes que se aproximavam dela, estabelecendo relações abusivas com eles. Alternava o padrão tudo ou nada, ora cedia a tudo, ora fugia de tudo. Sentia-se culpada e não sabia de quê. Não lhe ocorria que ela fosse disputada por ser atraente, bonita e carismática; mas, pelo contrário, sentia-se invadida pelo outro. Ela teve um namoro muito comprometido dos 13 aos 15 anos que deixou marcas quase tão danosas quanto as do abuso sexual a que esteve submetida desde a primeira infância. Este namorado era extremamente ciumento e controlador e Bela precisou de algum tempo distanciada dele para poder falar sobre essa relação em análise e perceber a inadequação do dito relacionamento. Afirma que se sentiu usada por ele quase tanto quanto pelo seu agressor sexual.
Por volta dos 17 anos, começam a aparecer os primeiros sintomas de uma obesidade que se revelou alguns anos depois bastante severa, levando-a a recorrer à cirurgia bariátrica. Bela conhece outro rapaz no pré-vestibular por quem se apaixonou e com quem se relacionou por 10 anos. Fizeram faculdades diferentes, mas na mesma universidade. Bela sobreviveu a dez anos de abusos freqüentes que poderiam ter sido devastadores de sua personalidade, mas sua força psíquica parece mais forte que o trauma que sofreu.
Segundo Ferenczi, Bela não sofreu um trauma desestruturante, pois em nenhum momento, ela foi desacreditada por sua mãe ou por sua família. A possibilidade de ela se reorganizar seria muito mais difícil, se sua história tivesse sido posta em xeque, quando decidiu romper com o muro de silêncio que envolveu sua relação incestuosa, durante toda sua infância.
Bela viveu um importante processo de reconstrução e restauração porque sempre pôde contar com um “holding” familiar e social bastante sólido. Por desfrutar deste suporte, queremos lembrar que Bela é uma pessoa bastante centrada, com questões bem definidas e que parece saber o que lhe convém. Parece que Bela conseguiu se reorganizar psiquicamente. Indícios desta possibilidade é que, por exemplo, sua vida sexual, aos 33 anos, é ativa, desejante e amorosa. Dessa forma, acredito poder afirmar que Bela, hoje, pode ser considerada uma resiliente. Ela já deu provas de que, se passou por embates muito fortes, consegue levar uma vida dentro dos padrões de “normalidade” de uma boa profissional, apesar dos grandes estresses que caracterizam a vida do profissional liberal em início de carreira no nosso país. Da mesma forma, do ponto de vista afetivo, Bela hoje tem um namorado, por quem é apaixonada e correspondida em seus afetos
Bela teve a oportunidade de ver iluminada outras possibilidades de sua personalidade, que não só seu aspecto de criança abusada, mas precisou¨ desenvolver uma obesidade mórbida como reflexo desses abusos sexuais vividos na infância. Não querendo vitimizá- la, opto por parafrasear Sartre, concordando que não podemos reduzi- la ao abuso, pois o essencial não é o que foi feito com ela, mas o que ela faz daquilo que fizeram dela.
Aos 25 anos, com 128 quilos, Bela enfrentou a obesidade, quando transbordou o desejo de se resgatar, submetendo-se à cirurgia bariátrica. Atravessou o processo de adaptação ao novo corpo, mantendo-se em análise, cuidando de si e de sua saúde enfrentando todas as dificuldades que dizem respeito às grandes transformações corporais. Bela precisava acabar de se constituir como sujeito, pois naqueles primórdios de vida psíquica dela restaram muitos vazios e muitos buracos/falhas na formação do seu ego corporal. Podemos supor que essa criança submetida aos abusos daquele que se dizia seu avô, aprendeu com ele a desrespeitar a principal lei da cultura, a lei do incesto. Bela reproduziu a falta de limite que o outro infringiu em seu corpo libidinal para sua relação com o alimento. Não aceitando limites na sua ingesta, empanturrando-se, com certeza, na intenção de se anestesiar. Cada vez a ingesta era maior, na medida em que ela ia se dando conta dos estragos feitos em seu corpo. O processo de culpabilização vai se instalando e alimentando a compulsão à repetição. A compulsão alimentar, aparentemente tão prazerosa, pode esconder muito desprazer. A compulsão é um conceito da psicanálise que diz respeito à efetivação ou repetição de atos ou pensamentos que vão na direção contrária às decisões e aos desejos conscientes dos sujeitos. A compulsão é uma das manifestações do inconsciente na vida do sujeito. Em 1920, no texto denominado “Além do princípio do prazer”, Freud desenvolve
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importante conceito de compulsão à repetição. Até então poderíamos pensar que o sujeito repetiria inconscientemente situações ou ações prazeirosas, censuradas pelo recalque, porém Freud descobriu que freqüentemente repetimos atos e situações que provocam desprazer e, até mesmo, dor. E uma vez em análise, levados pela compulsão à repetição, os sujeitos tendem a repetir com o analista as situações primitivas, inconscientes, que estão na origem de seus sofrimentos psíquicos e, com isto, resolvê-los. Assim sendo, até mesmo a compulsão à repetição pode ter seu lado positivo.
Quero terminar acreditando que, tal como no conto de fadas, onde Pele de Asno encontra a possibilidade de reconstrução de sua subjetividade ameaçada, é possível iluminar outros aspectos das personalidades de nossas Belas através de uma boa análise que favoreça a transferência como campo de construção da alma, privilegiando a sensorialidade das palavras.