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Comer para Ser Vista

A expressão do mal-estar varia de um momento histórico a outro, assim como nas diversas microculturas de uma mesma época. Este post aborda um projeto social e as dificuldades encontradas no atendimento a crianças, adolescentes e adultos.

COMER PARA SER VISTA

“…assim como a expressão do mal-estar varia de um momento histórico a outro, ela também

varia nas diversas microculturas de uma mesma época”1**

INTRODUÇÃO:

Fui convidada para trabalhar num projeto social composto de profissionais dispostos a doarem algumas horas da sua semana num trabalho voluntário…. Comecei meu trabalho em setembro de 2005 e durante os primeiros seis meses recebia os clientes numa simpática casinha no meio do Parque do Penhasco do Morro Dois Irmãos, no Alto Leblon. O local é bucólico, mas as condições de atendimento precárias. Na tentativa de melhorar as condições fui transferida para uma sala dentro do Posto dos Vigilantes do Parque. O gerente do local é um típico funcionário público que não se cansa de repetir que é muito complicado fazer qualquer mudança. Ele me cedeu por algum tempo a sua sala, mas depois de algumas semanas de atendimento ele a trancou e não tenho mais acesso ao único banheiro limpo e usável do local. Continuo precisando bem me posicionar para garantir um mínimo de privacidade aos meus clientes. Busco ter uma visão ampla do lugar, de modo a poder afastar os eventuais intrusos. É como se houvesse uma renda tecida pelas árvores que tentam amenizar a força da luminosidade do céu. E assim, vamos tecendo junto o emaranhado inconsciente daqueles que procuram atendimento…

Toda segunda-feira recebo crianças, adolescentes e adultos para sessões individuais. Um adolescente me diz que se sente “tentado“ a aderir ao tráfico em função das armas, do poder e das mulheres que o tráfico proporciona… Vamos tentando tecer uma fibra menos vulnerável, mas que lhes permita uma proteção da sua subjetividade que se mostre mais

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eficaz… O tráfico está presente aumentando a truculência nas relações familiares; e bordando marcas de dor no tecido rendado em que se transforma nossa relação terapêutica.

Dois meses depois de iniciado o trabalho houve o assassinato de um jovem em pleno domingo durante um campeonato de futebol. Tentaram abafar o caso. Viveram uma desilusão muito grande porque o grande orgulho dessa comunidade era afirmar que não havia violência por ali… Apesar de serem vizinhos do Vidigal. O mito da invulnerabilidade se desfez… A teia se esgarça, a cidade se parte, e ajudo a cerzir a existência marcada pelas faltas materiais que precisam conviver com a proximidade do luxo do bairro mais valorizado da zona sul…

Essa introdução tem como objetivo situar o caso clínico no ambiente em que o paciente atua e interage. Nesse trabalho privilegio o atendimento de uma menina de 8 anos, que me foi encaminhada pela tia, com o pedido de ajudá-la a emagrecer.

LÁ COMO CÁ:

Aos poucos as mesmas queixas que povoam nossos consultórios vão ocupando esse lugar de escuta em que se transforma o Posto dos Vigilantes às segundas-feiras. E não demorou a aparecer a questão da obesidade infantil como um problema também presente entre as crianças desta comunidade.

Em função da gravidade desse problema, companhias de entretenimento nos Estados Unidos estão se posicionando de forma diferente no mercado. O “Washington Post” e a “Disney” estão introduzindo uma linha de produtos saudáveis para alimentação infantil. A Nicklodeon introduziu uma novidade: ensinar as crianças a comer melhor, usando o personagem de “Bob esponja” e de “Dora exploradora” numa tentativa de mudar o padrão dietético das crianças, mas, com certeza, sem abrir mão de bons lucros e se associando a uma boa imagem de marketing. Não dá para perder de vista uma postura crítica que revela tratar-se de “boas” intenções “duvidosas” dessas empresas para se livrarem de graves acusações anteriores. Tanto lá como cá a subjetividade de nossas crianças vai se constituindo sob a égide da globalização e da epidemia de obesidade que afeta o nosso planeta.

L tem 8 anos e foi trazida para atendimento pela tia que mora ao lado dela, que por sua vez também mora ao lado dos avós maternos. Nessa comunidade é comum que os membros das famílias morem todos bem próximos, aproveitando o terreno para construção vertical, uma vez que esta comunidade proíbe o crescimento horizontal.

A queixa principal é que sua sobrinha está muito gorda, apesar de fazer muito exercício. Sua tia conta que L come muito, bobagens, guloseimas e que não gosta de nada que tenha valor nutricional. Faço um quadro com minha cliente onde colocamos de um lado os alimentos que ela gosta e do outro lado aqueles que ela não gosta. Não preciso me alongar sobre a questão, mas tudo que está na mídia, tudo que é colorido, e visualmente atraente fica do lado das preferências e já tudo aquilo que é natural e saudável, ela diz que apesar de nunca ter provado não gosta e não tem vontade de experimentar.

Soube por L que seu avô, a pessoa se ocupa dela durante as tardes enquanto sua mãe e seu pai trabalham, é muito bravo e muito rígido. Na visão de L a avó seria um pouco mais amena nas relações, mas não é suficientemente forte para se interpor entre L e o avô. Tenho por hábito chamar os pais para o atendimento numa freqüência que varia de acordo com o caso, mas que costuma ser de 1 vez por mês, dependendo da necessidade. Já disse inúmeras vezes que preciso conhecer a mãe e o pai de L, mas eles não conseguem se organizar para estarem comigo numa segunda-feira. Já recebi a tia, o avô e a avó.

Depois que recebi seu avô L se mostra muito mais confiante no trabalho comigo. Ela diz que ele agora está mais calmo e não está brigando tanto com ela. Sua avó também esteve em sessão comigo e pediu, enfaticamente, para que eu a ajudasse a tornar seu marido menos rigoroso com a neta. A avó conta que ele não quer que ela se relacione com as amiguinhas fora de casa, proibindo-a de sair para brincar e quando ela faz bobagem ou qualquer mal- criação ele a tranca sozinha, em sua própria casa, de castigo.

Minha cliente me diz que tem muitos medos, mas não faz nenhuma associação com a origem deles. Quando indago sobre seus sonhos, ela diz que tem muitos pesadelos, mas não consegue se lembrar deles. Sugiro que ela faça anotações sobre seus sonhos. Na semana seguinte ela me traz a impossibilidade de fazer uma lista de seus “desejos” porque seriam muitos e ela não sabe por onde começar…

As vivências traumáticas deixam traços psíquicos que, embora articulados à fantasia, podem se inscrever no corpo. Da mesma forma como sua mãe não consegue se articular para estar comigo, acredito que ela não consiga se fazer presente nesse “espaço sozinho e vazio” que sua filha ocupa quando extrapola e ultrapassa os limites estipulados por seu avô. E, provavelmente, também aqueles espaços emocionais que L tenta preencher quando usa a comida como forma de anestesiar essa dor.

As revelações que o teste HTP nos fazem quanto à vida psíquica das crianças são muito úteis. Em nosso primeiro encontro apliquei o HTP. Ela faz uma casa muito pequena na parte inferior da folha, usando o lápis com muita leveza. O sentimento de insegurança e menos valia estão presentes no tamanho e na leveza desse traço. Sua timidez e seu vazio existencial estão lá, traçados nessa escolha encolhida de uma tão pequena casa.

L se sente diminuída diante da rigidez de seu avô que a controla de forma contundente: “Ele é muito bravo, briga muito comigo, eu tenho muito medo dele”. Parece que L está internalizando o isolamento que seu avô lhe impõe nas tardes em que fica trancada sozinha em casa, sem poder brincar e sem contato com mais ninguém, de castigo. Seu traçado é leve, denotando abatimento de sua energia vital. Há muito poucos elementos no desenho da casa de L, mas seu desejo se faz presente, pois há uma menina no meio dessa casa de “paredes transparentes”, permitindo testemunharmos tudo que se passa dentro da casa. Fico atenta a uma possível confusão entre o mundo interno e externo que essa transparência possa estar revelando. Imagino também que L esteja querendo se apresentar para sua analista, pois as paredes são transparentes, mas ela tem muito medo do mundo externo, daquele mundo que seu avô “diz” ser perigoso (e do qual seu avô parece também fazer parte) e do qual ela precisaria estar afastada, sendo trancada, castigada e isolada. A menina está sozinha numa casa muito pequena, mas tem flores em cima de uma mesa, havendo um sentimento de que pode haver preservação de seu mundo interno, como atesta a presença de uma porta, apesar de fechada. A casa traçada por L não tem janelas, indicando sua dificuldade no contato com o mundo externo. Tampouco há chaminés ou fumaça, que expõe falta de força pela ausência de elementos fálicos. A casa está apoiada numa linha tênue apontando para as possibilidades de trabalhar com a realidade, mesmo que seu mundo fantasioso seja predominante.

Quanto à primeira árvore, que retrata sua situação atual, percebo um certo complexo de inferioridade pela localização escolhida, bem em baixo da folha. A copa nos dá uma ideia da sua criatividade atual, pois está repleta de florezinhas. Elas são muito pobres, sem nenhuma noção de perspectiva, mas presentes. Cabe a sua psicanalista poder perceber sua singularidade nuançando, um depois do outro seus diversos aspectos, como necessitam ser tratados nossos pacientes “literais”, como bem nomeia a psicanalista Jô Gondar2. Ou talvez ainda não se trate de “literalidade”, mas tão somente falta de maturidade. É necessário ajudar minha paciente a reorganizar sua subjetividade, oferecendo-lhe os recursos mínimos necessários para que ela deixe emergir suas escolhas e seus desejos.

Enquanto fazia a 2ª árvore ela disse: “Esta árvore está quase caindo”. Parece que ao buscar no seu passado suas características primeiras, ela repete a grossura do tronco e deixa claro que o grande “nó atual” da sua vida, presente no buraco do meio de sua árvore atual, não fazia parte de sua árvore original. Depois de 6 meses de atendimento e em função dessa marca estrutural de “não-buraco” na sua primeira árvore, L está conseguindo começar a nomear seus desafios. Parece que ela quer agradar sua mãe e se sentir menos pressionada pelo avô, e talvez para isso ela se sinta na obrigação de emagrecer. Os galhos da árvore de sua infância mais primitiva estão voltados para o lado esquerdo, como uma tentativa de se jogar em cima dessa mãe, que aparenta não ter tempo para ela. O lado esquerdo está mais relacionado às questões emocionais e à afetividade, e costumamos relacioná-lo com a feminilidade e com as carências maternas. Assim, ouço L dizer literalmente que sua emoção está caindo, parece-me, clamando pela mãe, que dá sinais de que nessa primeira infância já não tinha muita disponibilidade interna para sua filha.

Parece que não há grandes dúvidas no equacionamento da sexualidade de L. Ela desenhou primeiro a figura feminina. As figuras humanas estão bem proporcionais, são do mesmo tamanho, tanto o tronco quanto os membros superiores e inferiores. Eles têm sorrisos similares, mas os olhos são bastante distintos. A menina tem os olhos definidos e abertos, enquanto os olhos do menino estão semicerrados, denotando dificuldade em focar o que estão vendo. Em ambas as figuras os membros superiores aparecem bem mais fortes, e os membros inferiores atestam a corda bamba em que vive minha cliente, pois as pernas são finas e desproporcionais em relação ao resto do corpo. Em função da dificuldade da mãe para comparecer no atendimento, imagino que seja um reflexo da falta de disponibilidade dela para sua filha. L tem pouca capacidade de buscar satisfação de suas necessidades no meio-ambiente. Ambas as figuras não têm dentes, e acredito que L não tem agressividade suficiente para se defender. A boca da menina é maior que a do menino, que demonstra um certo sarcasmo enquanto a boca da figura feminina parece mais infantil, mais franca e mais direta. Os cabelos das figuras são similares em relação ao traçado, retratando simplicidade e objetividade, atuando meramente como contorno e denotando sua necessidade de buscar mais proteção. Desenhando primeiro a cabeça das figuras humanas, desproporcional ao resto do corpo, aponta na direção de uma tendência à introspecção, aspiração intelectual e ênfase na vida fantasiosa.

TRAUMA EM FREUD E EM FERENCZI:

Acompanhando a evolução da noção de trauma em Freud, verificamos que no ano de 1926 ele menciona o medo de morrer de fome presente na afirmativa: “Um aumento da apetência alimentar também não é raro; e uma compulsão a comer é atribuída à angústia de

morrer de fome”. Em 1927 ele aborda a lógica aditiva como uma das estratégias para evitar

  • sofrimento. Nesta ótica a obesidade pode ser vista como uma medida de proteção. Tentando investigar sobre a forma como minha cliente se organiza nas suas relações objetais não consigo informações sobre seu processo de amamentação, não consigo saber se sua mãe ou seu pai têm problemas de sobrepeso ou tendência à obesidade, não sei se eles desejaram L porque não conheço suas origens.

    Como tudo na pós-modernidade parece ter que ser resolvido muito rápido, - as pessoas, por exemplo, não podendo mais esperar para falar no telefone escolhem a “imediatice” dos celulares -, o pedido que chega a mim é de mais uma solução mágica e de preferência com a mesma rapidez de um celular em área de cobertura. Agem como se não fosse preciso que eu conhecesse o processo que levou L a engordar, só querem uma solução para os excessos alimentares dela, nenhum outro excesso poderia estar em questão na visão dessa família. Há um pedido: “Faça alguma coisa e rápido”. De quem será o desejo de que L emagreça? Será que ela precisa emagrecer antes de ficar mocinha, ou antes, que sua mãe tenha “tempo” para vê-la gorda…?

    Qual a relação entre transtornos alimentares e a experiência de satisfação? A partir da dependência do bebê em relação à mãe para suprir suas necessidades alimentares, o bebê liga sua satisfação à imagem do objeto. Talvez possamos imaginar que a perda do objeto torna-se determinante no aparecimento da angústia que leva o sujeito a buscar satisfação na comida. No trabalho terapêutico o importante é a investigação sobre o processo que o levou a desenvolver aquele sintoma.

    A especificidade do corpo feminino como aquele que “também” alimenta, juntamente com a transformação do corpo feminino na puberdade atestando sua possibilidade de poder engravidar e amamentar reflete a semelhança com o corpo materno. Esse pensamento está presente no imaginário social fazendo pressão para que os excessos de L não espelhem as

    dificuldades que essa relação com sua mãe já deixam antever. Reside nessa relação com a feminilidade a provável causa da prevalência das mulheres nos transtornos alimentares. Aparentemente L está sozinha nessa trajetória contra seu excesso de peso. Minha escuta me leva a crer que a tia, a avó e o avô fazem uma tríade de compensação, por vezes invasora e excessiva contra a ausência de sua mãe.

    Freud aborda a lógica aditiva como uma das estratégias para evitar o sofrimento. Assim sendo, os comportamentos aditivos (ou excessivos no comer) que acompanham o aumento de peso podem ser compreendidos como formas de proteção que a criança desenvolve para sobreviver ou para suportar a espera por essa mãe que não a escuta e que não a percebe. Como um objeto primário da menina essa mãe poderia funcionar como espelho de si no futuro, mas para isso ela precisaria estar presente. Dentro da lógica do pensamento mágico infantil, se L não é vista, parece que ela adota a estratégia de aumentar

  • seu tamanho para alcançar seu objetivo, ser vista pelo Outro.

A função alimentar, exercida através do corpo materno, pode estar no cruzamento de questões que engajam diretamente o corpo e a feminilidade, em uma problemática exclusiva da mulher. A função alimentar é o que se coloca entre o corpo e o outro. Quando refletimos sobre a questão do corpo (formas e funcionamento) e da feminilidade (sexualidade) concluímos que a alimentação assinala a importância do modelo da oralidade na constituição do sujeito.

A noção de trauma para Freud evolui de uma crença na origem do trauma em fatores externos para a noção de algo que não foi possível ser absorvido no interior do aparelho psíquico, num determinado momento da existência do sujeito. Se atuo na ótica alimentar prefiro afirmar então que “trauma é aquilo que não pode ser digerido”.

O corpo de L mostra que ela está acima do “peso ideal” para sua idade. Ela pode estar expressando uma dificuldade de lidar com as transformações hormonais que cada vez se impõem mais cedo. Se sua mãe puder canalizar seu olhar para suas necessidades, esse corpo infantil poderá ser transformado sob a ótica do acolhimento, ou seja, de forma menos traumática.

O precursor do espelho é o rosto da mãe. A insatisfação com a própria imagem advém de profundas carências afetivas norteadas pela sensação de desamparo, que podem levar o indivíduo à condição de extrema dependência, sobretudo dependência de parâmetros externos. Qual é o fator determinante de reconhecimento do indivíduo? Como a psicanálise nos diz que a aparência está na base desse processo de reconhecimento ajudando a completar a constituição do sentimento de si. Isto posto, até que ponto L está engordando para ser vista pela mãe?

Ferenczi3 também trabalha com a questão do trauma e nos ajuda a ter uma melhor compreensão sobre o tema. Ferenczi acreditava que a força dos fatores externos era determinante para todas as transformações no sujeito e parece ver no externo ao aparato psíquico o fator determinante para toda mudança possível. Em suma, em lugar dos fatores endógenos, seriam, sobretudo, os fatores externos ao sujeito os grandes perturbadores do aparelho psíquico.

O desmentido, para Ferenczi, é a pior coisa que pode acontecer com quem viveu um grande trauma, por isso é o desmentido que dá o caráter desestruturante ao trauma. O adulto que desacredita a criança ou ao adolescente está roubando deles o direito de expressão. A criança precisa do adulto para ter sua fala e sua existência autorizada, que denominamos nessa ótica pelo mecanismo de introjeção. Ao ser desmentida, a criança corre o risco de aniquilamento ou despedaçamento psíquico porque o que está introjetado é a necessidade de acatar a intermediação do adulto.

L diz que sente medo e que não gosta de ser trancada sozinha à tarde em casa como forma de ser castigada. Não é sua mãe que a coloca de castigo, mas, em função de sua presença-ausente tendo a supor que ela não acredita no que sua filha sente, na sua dor ou no tanto em que L se vê abandonada e desamparada. Da mesma forma, ela diz que tem fome e dizem que ela não pode comer porque está gorda. Ninguém acredita nela!

CONCLUSÃO:

Para curar feridas é preciso dar voz ao silêncio infantil, fazendo as crianças acreditarem que não são culpadas pelas situações abusivas que vivenciam, ajudando a romper com as falsas alianças que as impedem de revelar suas aflições e suas angústias. Ajudá-las sim, a se implicarem nos processos de transformações que podem trazer mais bem-estar psíquico para elas. Ana Cristina César afirmava que “angústia é fala entupida”, assim, romper o silêncio é também ajudar a diminuir a angústia, ou pelo menos ajudar a construir algo que preencha emocional e positivamente esse vazio interno que L começa a esboçar em suas primeiras demonstrações de confiança em sua psicanalista.

A busca do prazer instantâneo e descartável é constantemente promovida pela publicidade, que a tecnologia amplamente difundida coloca ao alcance até dos menos privilegiados, produzindo sentimentos de frustração e menos valia nas pessoas impedidas de consumir numa cultura em que o valor do eu é reduzido à pura aparência. O desejo de brilhar numa “sociedade do espetáculo” faz com que a aparência e o consumismo venham anestesiar as carências mais primárias. É importante articular o psíquico com o social. Hoje

  • social tem dificuldades para a inscrição no simbólico, uma vez que é o simbólico que dá concretude ao NÃO, repensando o pai real, essa figura que presentifica o NÃO. Assim, nos deparamos com a necessidade de reabilitarmos a educação, tanto a importância da educação dada pelos pais quanto à educação dada pelos professores. A escola, certamente, é um dos alicerces com os quais nossas crianças aprenderam a contar. Boas noções de nutrição e aprender a valorizar aquilo que faz bem à saúde, pelo viés do lúdico, são alguns dos recursos que as escolas precisam explorar para tentar fazer frente à epidemia de transtornos alimentares que assola nosso planeta.

    Nesse momento vivemos a mutação do laço social. Segundo Jean-Pierre Lebrun esse processo de mutação acontece de acordo com uma determinada dinâmica: como a sociedade interfere na construção do aparelho psíquico há necessidade da renúncia do imediato; para ser sujeito cada um precisa ser reconhecido pela sociedade; então para refazer o laço social há uma necessidade ou exigência de que todos estejam dentro da lei, uma vez que a impossibilidade abre para o que é possível. O simbólico precisa ser construído, ou seja, precisa ser feito e refeito no imaginário pela educação. Por isso é preciso que o adulto transmita a impossibilidade do gozo. Como as garantias para a realização de nossos projetos eram a família, o trabalho, a religião e a política, e esses valores não ocupam mais o lugar valorizado que tinham no passado, encontramos dificuldade de realizar o que planejamos. Hoje os vínculos são mais plurais, mais instáveis, mais precários na “cultura das sensações” abrindo espaço para a instalação dos Distúrbios de Imagem Corporal, revelando grande pobreza afetiva. A promessa de felicidade pelas sensações é falsa. A cultura das sensações remete ao culto do corpo, que é imediatista. Para fazer e questionar essa cultura a única solução é fortalecer o vínculo mais seguro, que é o dos pais e filhos, fortalecendo os vínculos educacionais entre pais e filhos e entre professores e alunos.

    Winnicott afirma no “Da Pediatria à Psicanálise”, que os distúrbios do apetite demonstram uma continuidade clínica da infância à fase adulta. Para ele, em todos os tipos de doença o comer está implicado, e o apetite está sempre vinculado à defesa contra a ansiedade e a depressão. Ele ressalta que é com grande frequência que as questões do apetite se encontram presentes na prática pediátrica. Doenças estão sempre associadas à problemas na alimentação. Quando não há doença física e há queixa é porque as crianças estariam doentes em seus sentimentos. Para ele, a atitude em relação à comida é uma atitude em relação a uma única pessoa, a mãe. A história de uma doença pode ter seu início nos primeiros anos de vida ou mesmo nas primeiras semanas.

    O grande desafio para o profissional da área psi frente à obesidade infantil é, no nível da clínica individual, ajudar o paciente a assumir seu papel sexual genital, integrando-o às transformações próprias da sua idade.

    Encontro com o pai ocorrido nas vésperas da apresentação do trabalho:

    L é muito ansiosa, se ela é contrariada ela come ou fica de cara emburrada e aborrecida. Ele diz que precisa usar o seu poder e mostrar que quem manda é ele. Aprendeu com seu pai que só deve falar uma vez e ser obedecido. A mãe sempre acha que ele está sendo excessivo. Ele diz que L tem dificuldade de ouvir NÃO e que ele é favorável ao NÃO na educação.

    Ele afirmou que ela está mudando muito seu comportamento nos últimos dias e não quer comer mais, dizendo que tem que emagrecer de qualquer forma, não quer se alimentar e tem sentido dor de estômago.

    O pai conta que a mãe de L não sabe administrar o NÃO. “Eu sou rígido com L porque ela não aceita limites”. Exemplo: “Eu dei 2 palmadas nela e ela partiu pra cima de mim”, isto aconteceu porque ela rabiscou a parede da sala depois que o pai a tinha pintado. Isso

    aconteceu quando L tinha menos idade, mas ele diz que ela já tinha 7 anos, mas L corrige e afirma que só tinha 5 anos.

  1. ` `FERNANDES, M. H. (2006) – Transtornos Alimentares – anorexia e bulimia - Clínica Psicanalítica, São Paulo: Casa do Psicólogo, p.109. ↩︎

  2. Para Jô Gondar “clientes literais” são aqueles que apresentam dificuldade para se expressar ou para elaborar uma metáfora, evidenciando um dos novos sintomas da alma ou das novas patologias da atualidade. São literais porque tomam o sentido ao pé da letra, tendendo a um extremo realismo, falando de si de forma distanciada, aparentando falta de profundidade no seu discurso. A autora exemplifica, através da grandeza e da positividade de mestres da pintura holandesa, o quanto pode ser falacioso tomar por raso ou pobre aquilo que aparentemente nos é apresentado “sem perspectiva”, apontando para necessidade de o profissional buscar outras estratégias clínicas, fazendo ligações com o paciente de uma outra maneira e pressupondo que a criatividade também pode estar presente no que se apresenta de forma literal. ↩︎

  3. Para falarmos de trauma em Ferenczi, precisamos introduzir o conceito de introjeção, aliás, fundamental para compreensão do aparelho psíquico para este autor: “Eu descrevi a introjeção como a extensão ao mundo externo do interesse, auto-erótico na origem, pela introdução dos objetos exteriores na esfera do ego. Insisti nessa ‘introdução’, para sublinhar que considero todo amor objetal (ou toda transferência) como uma extensão do ego ou introjeção, tanto no indivíduo normal quanto no neurótico (e no paranóico também, naturalmente, na medida em que ele conservou essa faculdade).” (FERENCZI, S. 1912:181). ↩︎

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