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Corpos Silenciosos e o Alarido dos Retalhamentos

Refletindo sobre a influência da mídia e da cultura estética na busca incessante pelo corpo perfeito, este post aborda as consequências físicas e emocionais das cirurgias plásticas e da "lipofobia" na era pós-moderna.

Corpos silenciosos e o alarido dos retalhamentos:

Era uma vez, na era pós-moderna, a possibilidade de se “retalhar” o corpo… Há possibilidade de aumentá-lo, diminuí-lo, torná-lo mais esbelto ou mais provocante fazendo uso de próteses ou deslocando gorduras e tecidos de onde não são benquistos para outros lugares considerados “carentes”. Qual o uso que se faz dessas possibilidades? As pessoas tornam-se mais felizes? Afinal quem não tem o direito de buscar a felicidade? Sendo este o álibi utilizado por todos, os corpos vão sendo retalhados. Começam em plena adolescência a lipo esculpirem o próprio corpo em função da “lipofobia” que assola nosso país. A maior rede nacional de televisão apresentou em horário nobre uma moça de 20 anos que havia começado, ainda teenager, a se submeter à “prática estética” de cirurgias plásticas, já contando em dois anos com quase duas dezenas delas. O pior é que o resultado para o público não passava de uma “pequena” melhora evidenciada pela indefectível mudança de morena para o padrão Barbie de loirice. Mas ela afirmava que se sentia muito mais feliz…

Sendo assim, vale uma reflexão sobre o mote de todo este esforço.

Gostaria de começar pelo papel desempenhado pela mídia junto à vontade de transformação desses corpos que só encontram forma de expressão pela via da exigência de um corpo perfeito. Não é a toa que há quem nomeia a possibilidade de tratar de “doenças da beleza”. O que seria a beleza adoecida? Seria um corpo doente ou um corpo sem outra expressão que não a da exposição do que é ditado pela ditadura da magreza. As mulheres estariam buscando atingir um determinado modelo, ou buscando agradar um companheiro? Nesta tentativa de busca, parece-me que elas se perdem num desacorçoado narcisismo. Vale lembrar que a definição que Laplanche1 utiliza para narcisismo é, por referência ao mito de Narciso, “o amor pela imagem de si mesmo”, tão presente na nossa sociedade, e que alimentado por uma grande dose de masoquismo, haja visto o alto grau de sofrimento físico a que são submetidas nestas cirurgias, impulsiona a “indústria do retalhamento” para níveis de requinte e de perfeccionismo só dignos de um Narciso da (nossa) era do titânio.

Como não podia deixar de ser, esse processo de retro-alimentação da auto- imagem não passa pelo outro, ou melhor, não considera o outro ou a opinião que este possa ter sobre as causas ou os efeitos dessas possíveis transformações. É claro que

acaba havendo um efeito sobre o outro, mas ele é fruto muito mais daquilo que esta mulher acredita ter transformado em si própria do que uma efetiva mudança nesse corpo retalhado e que teima em não se calar. O outro parece estar muito mais identificado com aquilo que Narciso chamaria espelho (sobretudo o das academias de ginástica), ou ainda como corolário desta forma especular: fotografia, filme ou last but not least, televisão, regida pela força imagética da mídia que silencia o sofrimento desses corpos desrespeitados.

Como seria então atingir esse corpo apregoado pela mídia, calcado, no que chamo, de “estética da carência”? É como se quisessem apagar as singularidades de cada corpo pela necessidade de identificação com um modelo predeterminado que não permite o desabrochar de uma subjetividade que possa dar conta das diferenças, mais livre e menos comprometida com os ditames de uma lei que nos impede de envelhecermos com dignidade. Será que a tão exigida associação de saúde com juventude não permitiria outras formas de associação que permitisse o convívio com as diversos “idiomas” ou dialetos que o corpo poderia ser expressão? Como seria a possibilidade de envelhecer de forma saudável e falante? Por exemplo, será que podemos escolher cultivar a sabedoria que o tempo proporciona? Ou será que o passar dos anos só pode nos trazer os malefícios da lei da gravidade?

Dirce de Sá

  1. LAPLANCHE E PONTALIS - (1991) Vocabulário da Psicanálise, 11a. ed., São Paulo, Martins Fontes, p, 287. ↩︎

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