O Alimento é uma forma de afeto
A contemporaneidade é marcada pelo peso dos excessos, expressos nas novas modalidades de sofrimento, incluindo os transtornos alimentares. A forma clássica de padecimento neurótico cede espaço aos novos sintomas, onde o corpo se torna testemunha de um precário investimento libidinal.
O Alimento é uma forma de afeto:
“Há um cordão, invisível, que prende o coração-mãe ao coração-filho, e os põe em comunicação. A vida é uma só, repartida em dois seres.” José de Alencar
A contemporaneidade é marcada pelo peso dos excessos, expressos nas novas modalidades de sofrimento. A forma “clássica” de padecimento neurótico vem perdendo terreno para os “novos sintomas”, onde se incluem os transtornos alimentares, que emergem como patologias do ato. O mal estar atual se manifesta através de uma marca muda impressa no corpo, testemunha de um precário investimento libidinal nos primórdios da vida psíquica. O corpo funciona como uma expressão da dificuldade de chegar à palavra daquele que sofre de algum transtorno alimentar, evidenciando sua insuficiência na simbolização.1
Algo da ordem simbólica não se desenvolve plenamente nestes indivíduos, também chamados por alguns autores2 de “neo-sujeitos”. Não se trata de uma incapacidade de simbolização, mas de uma dificuldade de metaforizar e/ou traduzir concreto e simbólico. O atravessamento do sujeito pela linguagem não se dá de forma completa, não possibilitando que o desejo se instaure, deixando-o aprisionado no gozo. O funcionamento psíquico fica, assim, atrelado às marcas necessariamente corporais que funcionam como continente, esboçando um limite sempre precário, que não permite ao sujeito fazer frente ao excesso, representado, por exemplo, pelo funcionamento compulsivo como “motor” do gozo mortífero.
Será pela dor que seu corpo falará e se fará visível. O importante é lembrar que isso ocorre na ausência de representação ou na dificuldade de simbolizar. O corpo fala quando não encontra outra forma de expressão pela linguagem!!! Trata-se de um modo de subjetivação quase direto, com uma precariedade simbólica originária, e que, por isso mesmo, só permite contar a própria história e atravessar conflitos sob a forma de marcas no corpo. Dessa forma, constatamos que a dor física pode representar, para o neo-sujeito, uma possibilidade de reconhecimento enquanto pessoa, e suas angústias lhe garantindo um lugar no mundo que, de outra forma, sem dor, ele não sabe ocupar.
Para se sentir vivo ele “come demais” ou “não-come demais”. Com um ego corporal cravejado de “falhas básicas”, como diria Balint, não consegue desenvolver um ego psíquico suficientemente forte para aceitar os limites que a boa saúde exige. Desse jeito, lança mão da dor como forma de mostrar ao outro (que pode não ser, necessariamente, a mãe…), ou a si próprio (porque não aprendeu com a mãe e/ou cuidador a detectar suas necessidades) que está vivo.
Em 1936, Winnicott, no capítulo do livro Da pediatria à Psicanálise, intitulado “O Apetite e os Problemas Emocionais” afirma que “a voracidade é algo tão primitivo que só pode aparecer no comportamento humano sob disfarce e como parte de um sintoma complexo”. Para ele, os distúrbios do apetite apresentam uma continuidade clínica ao longo de toda vida, concluindo que tanto na saúde, quanto na doença, o comer é afetado. Para este autor, a atitude frente à comida seria equivalente à atitude frente à mãe, por isso, mais tarde, os sintomas da alimentação vão variar de acordo com o relacionamento da criança com o outro.
Pensar a relação do sujeito com o alimento nos remete à necessidade do ser humano de desfrutar de determinadas características no ato de alimentar-se. Esta deve ser agradável, fonte de prazer indispensável e um momento especial de compartilhamento, uma vez que os rituais exercem função importante para o bom funcionamento dos vínculos sociais e para a constituição do sujeito. A relação sadia do ser humano com o universo alimentar é imprescindível para evitar os transtornos alimentares. Winnicott diz que os distúrbios do apetite são muito comuns nas doenças psiquiátricas e pediátricas e que estas perturbações do apetite podem sempre estar entrelaçadas com outros sintomas, apesar de, desde sua época, haver dificuldade no reconhecimento da importância do ato de comer.
Na anorexia encontramos um desejo doentio de ser magro e um medo obsessivo de engordar, evidenciando que esta pode ser também uma forma reativa de se lidar com a obesidade. A pessoa anoréxica é aquela que se vê e que se sente gorda independente da imagem que esteja refletida no espelho, denotando grave distorção da imagem corporal. Trata-se de uma percepção distorcida quanto ao seu próprio corpo, que está presente, aliás, em todas as formas de transtorno alimentar. O paciente anoréxico vê-se como “gordo”, apesar das pessoas em volta notarem que o paciente está abaixo do peso, magro ou muito magro, ele insiste em negar e em querer emagrecer e perder mais peso. Pacientes com anorexia tem apetite, o que significa dizer que sentem fome e apesar dela, se recusam a comer, num mecanismo de negação da realidade.
As redes sociais presentes na internet estão repletas de sujeitos que tentam convencer aqueles que buscam respaldo informativo e afetivo nelas, de que anorexia e bulimia são estilos de vida escolhidos, buscando eliminar o caráter patológico. O aumento da incidência da doença teria como uma das explicações as pressões sociais cada vez maiores para que as pessoas tenham um corpo magro. As doenças encontram na cultura diferentes formas de expressão, já que os ideais variam conforme a época. “Se as santas medievais almejavam a comunhão eterna com Deus, as anoréxicas de hoje se contentam com a glória efêmera das passarelas”.3
A dinâmica psíquica da anoréxica se articula em torno da recusa. Como consequência lógica dessa estrutura, o sujeito recusa o outro, recusando o alimento (que vem do outro), que também é uma forma de negar/recusar o afeto contido no ato de se alimentar. Nessa dinâmica o alimento e a mãe são recusados. O fato de deixar de comer pode simbolizar a desistência da anoréxica pela mãe e também sua hostilidade em relação à função materna. O inconsciente quer se libertar da mãe devoradora, invasiva, superprotetora que nutre e protege demais, sempre tendendo para o excesso… Para tornar-se independente, a jovem decide não se nutrir mais desta mãe simbolizada pelo alimento e por não expressar seus temores e traumas infantis, prefere fechar a boca tanto para falar quanto, e sobretudo, para comer. Como sua organização acontece em torno da recusa, esta é uma das principais dificuldades que encontramos para tratá-lo, pois o sujeito nega a doença e também toda forma de ajuda, tanto clínica, quanto psicológica. Em função dessa marcante característica da anorexia, Lacan afirma que: “não é que o anoréxico nada coma, é que ele come o nada…”.
Encontramos uma prevalência dos transtornos alimentares na puberdade, exatamente pela dificuldade de saber de si, sentimento tão arraigado a essa fase da vida. É a época da contradição dos desejos tanto nos corpos femininos quanto nos masculinos: a ambiguidade e a incompatibilidade entre a dimensão insaciável da sexualidade, com sua ebulição hormonal, e o sentimento de rejeição que esse antagonismo pode provocar. O corpo anoréxico funciona como lugar de expressão daquilo que não consegue ser, apresentando-se, então, como o corpo negativo, espelhando a problemática feminina do séc. XXI. Esta problemática é sustentada pela dificuldade de lidar com o limite. Este corpo emagrecido e amenorréico é um efeito da sexualidade no corpo. Trata-se de um corpo que fala pela falta (pelo excesso de falta) evocando o mal-estar na contemporaneidade.
Quanto à provável causa da prevalência feminina na anorexia e na bulimia, parece estar ligada à especificidade do corpo feminino, identificado como aquele que é capaz de alimentar. Há que se ater ao aspecto importante da diferença entre as transformações femininas e masculinas. O rapaz engrossa a voz, adquire uma série de pelosidades pelo corpo, vive uma ebulição hormonal, mas o corpo da menina é marcado pelo sangramento mensal, que fragiliza e amedronta muitas meninas, podendo ser esse aspecto elucidativo desta prevalência feminina. Esta transformação do corpo feminino na puberdade atesta sua possibilidade de poder engravidar e de amamentar, apontando para a semelhança com o corpo materno. Enfim, percebendo as possibilidades de identificação com o corpo da mãe, a adolescente prefere apelar para o processo de negação, recusando tudo que se relaciona com a figura materna, sobretudo com os aspectos afetivos presentes neste vínculo.
Dentre as características psicológicas da anorexia destaca-se a recusa
inconsciente de crescer, tentando conservar as formas da infância, fruto de grandes comprometimentos no relacionamento patológico com a mãe. Em função das dificuldades na relação com esta, a gravidez e a maternidade são consideradas aberrações. Esta recusa da feminilidade na anorexia, manifesta-se não querendo ter formas arredondadas como ancas e seios, que são as marcas femininas por excelência. Na anorexia percebemos um perfeccionismo exacerbado, característica de uma estrutura obsessiva, tão frequentemente encontrada nestas pacientes, que são dependentes, mas atuam, aparentemente, de uma forma independente. São pessoas extremamente carentes de afeto, com obsessiva tendência para o perfeccionismo intelectual, que as leva a uma tendência exagerada para racionalização. Todos os transtornos alimentares mostram dificuldades com os afetos, portanto, nas relações em geral.
As principais características da bulimia são a ingestão periódica de grandes quantidades de alimento e a adoção de comportamentos compensatórios, como indução de vômitos, uso de laxantes, diuréticos ou enemas. Nos episódios de compulsão, os pacientes comem sem controle até não aguentarem mais e depois vomitam o que comeram. Quando a doença já está instalada e a quantidade ingerida é muito grande nem é mais necessário induzir o vômito, o próprio corpo se encarrega de eliminar o conteúdo gástrico sem maiores esforços. Há casos raros de pacientes que rompem o estômago de tanto comerem. Na bulimia, o “ataque-vômito” pode ser o resultado da dificuldade de simbolizar o vivido. Maria Helena Fernandes no livro “Transtornos Alimentares – clínica psicanalítica – anorexia e bulimia”, afirma que os atos-sintoma, como também podem ser chamadas as adições, e como também é o caso da bulimia, revelam falhas na simbolização, que podem ser compensadas por um atuar de qualidade compulsiva, na busca de reduzir a dor psíquica pelo caminho mais curto.
No tratamento da bulimia o importante é a investigação sobre o processo que levou o sujeito a desenvolver aquela doença. Enquanto ele não puder expressar seu mal-estar de outra forma, o vômito permanecerá como o sintoma maior, indicando que algo não está bem. Este ato bulímico aparece como um ato sintoma, buscando descarregar o máximo de tensão criada por acontecimentos internos ou externos. O vômito nos diz que há algo que precisa ser falado para que o sujeito possa se reorganizar internamente. Ou seja, este sintoma-vômito tem a função de nomear um sofrimento4 que precisa ser elaborado através da linguagem para que possa ser atravessado e/ou superado.
Fazendo uma analogia com aspectos religiosos arraigados na nossa sociedade judáico-cristã, a anorexia está associada ao jejum religioso, enquanto a bulimia associa-se ao pecado da gula, dando à primeira um caráter de orgulho, enquanto reveste a segunda de um caráter vergonhoso. A bulímica tem vergonha de “comer mais do que deve”, enquanto a anoréxica se orgulha de “prescindir daquilo que todos precisamos para viver”, pois ela acredita não precisar de alimento, corroborando sua tese de que precisa de nada, e pelo mesmo motivo imaginar que pode abrir mão do outro.
Alguns autores afirmam que houve um aumento da incidência da anorexia e da bulimia nervosa nas últimas décadas e relatam alterações significativas em relação à psicopatologia da doença e mudanças na sua forma. Hoje há mais visibilidade em função da velocidade da informação. Entretanto, podemos afirmar que houve uma mudança na natureza da anorexia nervosa, evidenciada pela preocupação das pacientes com seu peso e seu horror a engordar, pois no passado essas preocupações estéticas não se faziam presentes da mesma forma. Na Idade Média, as anoréxicas visavam se aproximar de Deus e se purificarem, e não havia nenhuma valoração positiva em ser magra, muito pelo contrário, a magreza estava associada à fome e à desnutrição, que levou um número enorme de pessoas à morte.
Os Transtornos Alimentares, na atualidade, estão relacionados às mudanças presentes no social e que mostram a desestruturação da conduta alimentar, aliado ao aumento dos problemas de comportamento de adolescentes, à crise dos valores tradicionais que desqualificaram o ato de comer em família e o consumismo exacerbado, entre outras. Todas essas questões apontam na direção dos excessos, que é a marca predominante da cultura atual. É dentro deste contexto que constatamos que a obesidade se transformou em epidemia mundial. Será que pode haver um equilíbrio entre as diversas formas de se alimentar que o século XXI conheçe? “A longa história de nossos corpos ensina que, quanto mais olharmos para trás, buscando conhecer o passado de nossos avós obesos, melhor entenderemos e construiremos nossa identidade, no presente”5. Esta afirmação nos mostra de forma contundente o peso da história, tanto da História com H maiúsculo quanto das pequenas histórias das nossas subjetividades. Enquanto a História se propõe a fazer uma indagação objetiva, a segunda se apresenta através da linguagem e das lembranças “atualizadas” na fala de nossos clientes.
Desde 1985 a OMS considera a obesidade uma doença crônica, provocando ou acelerando o desenvolvimento de várias outras doenças (comorbidades) e causando morte precoce. A obesidade acomete um grande número de pessoas – no Brasil, onde 50% da população adulta tem excesso de peso. Hoje, 60% das mortes não violentas estão de alguma forma ligadas à obesidade! 80.000 das mortes por ano no Brasil e 2.000.000 no mundo estão ligadas à obesidade.6 Ela é considerada uma doença multifatorial, pois o organismo humano é o resultado de diferentes interações entre o patrimônio genético (herdado de seus pais e familiares), o ambiente sócio- econômico, cultural e educativo e o ambiente individual e familiar. Uma criança obesa tem 40% de chance de se tornar um adulto obeso e um adolescente obeso aumenta esse risco para 70% de chance de vir a ser um adulto obeso. Para fazer frente a uma epidemia que já apresenta dimensões pandêmicas, temos que agir na prevenção. Precisamos ficar muito atentos para esta necessidade, pois nos últimos 20 anos as crianças engordaram mais que seus pais. Há 20 anos atrás os homens obesos representavam 3% da população masculina e hoje são 7% desta população, as mulheres obesas representavam 8% da população feminina e hoje são 13%, mas as crianças representavam 3% da população infantil e hoje esse número cresceu muito, atingindo 15% da população infantil.7
E tal como a anorexia e a bulimia, a obesidade também é regida pelo mecanismo da recusa, aparecendo, reativamente, como uma forma de negar o limite, numa incessante busca pelo prazer ilimitado. Mas é importante saber o que é a obesidade, eliminando alguns preconceitos e podendo afirmar que não é falta de vergonha na cara, não é falta de caráter, não é falta de força de vontade e também não é falta de educação, ou seja, não é da ordem da moral. A obesidade é uma doença crônica que não permite a boa ligação entre o cérebro e o estômago.
Os transtornos alimentares, em geral, exemplificam bem a influência sócio- cultural pela incidência de alguns transtornos emocionais, atestando a influência do social. Sinal dos tempos!!! Eles refletem os tempos pós-modernos, onde a sociedade está marcada por um exacerbado narcisismo. A Psicanálise pode ajudar o paciente a internalizar a necessidade e a importância do limite e da lei como elementos estruturantes no processo de subjetivação.
Os Transtornos Alimentares são a expressão no corpo da dificuldade do sujeito pós-moderno lidar com os limites. O grande abalo dos valores tradicionais e a relativização da importância dos rituais estão na base da epidemia dos transtornos alimentares. A pressa dos tempos modernos estão levando ao fim dos rituais. Sem ritual o homem tem dificuldade para compartilhar. A amamentação está implicada com a satisfação orgânica da fome e também com o afeto ou a falta dele que vem da mãe. Não há nada que remeta mais ao afeto do que a imagem de um bebê trocando olhares e mamando no seio materno. A alimentação expressa os afetos presentes nos vínculos familiares! Eles expressam a forma como o sujeito foi acolhido no mundo, ou melhor, a forma como ele foi alimentado nos primórdios da vida psíquica! A alimentação sempre está envolvida com os significados simbólicos que atribuímos a ela, estando sempre presente no nível da demanda. O ato de comer é fundamentalmente uma forma de compartilhar com o outro. Ele atravessa as diferentes culturas sob a égide de uma importante função social: estabelecer laços entre a necessidade nutricional e os valores culturais. A experiência de compartilhar um alimento é da ordem do ritual, e como tal, não ocorre na indiferença: há uma dimensão afetiva presente neste ato que nos permite afirmar que o alimento é uma
forma de afeto.
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Trabalharei com conceitos utilizados por Ivanise Fontes, propostos no livro: A Psicanálise do Sensível, buscando valorizar o fato de que a origem do psiquismo encontra-se no corpo. O corpo aparece nos novos sintomas como estandarte do sofrimento psíquico, numa tentativa de dar conta daquilo que ficou “des-simbolizado”, exigindo um olhar para a história desse corpo e para o modo como o psiquismo dele emergiu no processo de subjetivação. ↩︎
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Jean-Pierre Lebrun é um dos autores que consideram essa nova forma de subjetivação. ↩︎
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WEINBERG, Cybelle (2006) - Do Altar às Passarelas - Da anorexia santa à anorexia nervosa, São Paulo: Editora da USP ↩︎
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ZALTZMAN, Nathalie - “Le normal, la maladie et l’ universel humain” in De la guérisson psychanalytique Paris, Puf, 1999; p. 95 ↩︎
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PRIORE, del Mary (2005) - Aula proferida no curso sobre Transtornos Alimentares na CCE-PUC/RJ ↩︎
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Dados da “National Institutte of Healthy - Consensus Conferences” (2007) ↩︎
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Dados extraídos da Organização Panamericana de Saúde (2007) ↩︎