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O CORPO EXCESSIVO DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES

O atravessamento do sujeito pela linguagem não se dá de forma completa, não possibilitando que o desejo se instaure, deixando-o aprisionado no gozo.

O CORPO EXCESSIVO DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES

1ª Parte: A dificuldade de simbolização

Uma das marcas características da contemporaneidade são as novas modalidades de sofrimento. A forma “clássica” de padecimento neurótico vem perdendo terreno para os “novos sintomas” - incluídos aí os transtornos alimentares - que emergem como patologias do ato. Nestes casos, o mal-estar aparece na forma de uma marca muda impressa no corpo, testemunha de um precário investimento libidinal nos primórdios da vida psíquica. O corpo funciona como uma expressão da dificuldade daquele que sofre de algum transtorno alimentar em chegar à palavra, evidenciando sua insuficiência na simbolização.

Algo da ordem simbólica não se desenvolve plenamente nestes indivíduos; não se trata de uma incapacidade de simbolização, mas de uma dificuldade de tradução entre concreto e simbólico. O atravessamento do sujeito pela linguagem não se dá de forma completa, não possibilitando que o desejo se instaure, deixando-o aprisionado no gozo.

Tanto a neurose como a psicose podem servir de “base” sobre a qual o transtorno alimentar irá se instalar. O que ocorre no caso de uma estrutura neurótica, organizada em torno do recalcamento, quando da presença de um transtorno alimentar, é que esse processo não se cumpre devidamente, já que o recalque originário seria a intervenção intrapsíquica que assegura a simbolização do real pela linguagem, através da passagem pela castração. Como os transtornos alimentares são da ordem das patologias narcísicas, com o agravante de terem como locus privilegiado de manifestação o corpo, esse “intrapsíquico” não assume, de fato, a função anteriormente ocupada pelo corpo, ficando então como um “peri-psíquico”. Há simbolização, mas esta não acontece de forma suficiente.

No caso de estrutura psicótica, a dificuldade na simbolização é maior que em uma estrutura neurótica, já que sua organização psíquica se dá a partir da foraclusão, que se traduz, em primeiro lugar na rejeição da metáfora paterna e, conseqüentemente, na não entrada no simbólico. Esse processo aponta na direção de uma grande dificuldade com o limite, que é campo fértil para instalação dos transtornos alimentares. Nesses casos, os sintomas apresentados são muito mais gritantes: o pensamento se organiza de modo delirante e a vivência corporal pode ser marcada por alucinações. A dificuldade de simbolização não deve ser compreendida fora da capacidade de cada uma das três estruturas (psicose, perversão e neurose). Também é preciso considerar os níveis de desenvolvimento psicomotor, cognitivo e social do sujeito, inserido em seu contexto cultural.

O funcionamento psíquico fica, assim, atrelado às marcas necessariamente corporais que funcionam como continente, esboçando um limite sempre precário, que não permite ao sujeito fazer frente ao excesso, representado, por exemplo, pelo funcionamento compulsivo ou pelo “motor” do gozo mortífero. Os sintomas corporais falam pelo sujeito, espelhando sua necessidade, por vezes, de se utilizar dos desconfortos corporais para se sentir vivo. A dor física lhe possibilita um reconhecimento enquanto pessoa. Não podemos esquecer que suas angústias lhe concedem um lugar no mundo que, de outra forma, sem dor, ele, muitas vezes não sabe ocupar. Para se sentir vivo ele “come demais” ou “não-come demais”. Por não possuir os elementos necessários para plena constituição de seu ego corporal, não consegue desenvolver um ego psíquico suficientemente forte para aceitar os limites que a boa saúde exige. Desse jeito, lança mão da dor como forma de mostrar ao outro (que pode já não ser, necessariamente, a mãe…) ou a si próprio (porque não aprendeu com a mãe e/ou cuidador a detectar suas necessidades) que está vivo. Dessa forma, será pela dor que seu corpo fala e se faz visível. O importante é lembrar que isso ocorre na ausência de representação ou na dificuldade de simbolizar. O corpo fala quando não encontra outra forma de expressão pela linguagem!!!

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