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Poder, História e Cultura no Abuso Sexual Infantil

O presente artigo visa examinar o abuso sexual infantil como afirmação de poder, analisando aspectos culturais e históricos que ajudam a compreender melhor essa questão complexa.

PODER, HISTÓRIA E CULTURA NO ABUSO SEXUAL INFANTIL

Dirce Sá

«Resgatar a história da criança brasileira é dar de cara com um passado que se intui, mas que se prefere ignorar, cheio de anônimas tragédias que atravessam a vida de milhares de meninos e meninas.» (Mary Del Priore)

  1. DEFINIÇÃO E ALGUNS DADOS SOBRE ABUSO SEXUAL INFANTIL NO BRASIL

O presente artigo visa primeiramente examinar o abuso sexual infantil como afirmação de poder. Acreditamos que tal perspectiva é interessante para analisar essa questão complexa e constituída de múltiplas determinações. Com o exame da literatura brasileira recente, percebemos que as abordagens centradas unicamente na psicopatologia dos abusadores ou que levam em conta apenas o direito das crianças e adolescentes (direitos humanos) são hegemônicas no campo que se convencionou chamar de “psi”. Contudo, entendemos que elas negligenciam aspectos culturais e históricos que poderiam nos ajudar a compreender melhor o problema e que aqui vamos aprofundar.

Para iniciar este trabalho, cumpre procurar definir abuso sexual infantil. Bem aponta Faleiros (2000) em sua recente revisão analítica do vocabulário sobre o tema, quando chama a atenção para a imprecisão terminológica sobre o assunto. A autora mostra que o fenômeno do abuso sexual é designado por diferentes termos como: violência sexual, agressão sexual, vitimização sexual, maus tratos, crime sexual, entre outros, utilizados indevidamente como sinônimos.

Abuso sexual infantil é uma forma de violência sexual contra a criança ou o adolescente. A etiologia e os fatores determinantes do abuso sexual envolvem questões culturais (como é o caso do incesto) e de relacionamento (dependência social e afetiva entre os membros da família), o que dificulta a notificação e perpetua o silêncio no qual as crianças se vêem enredadas. Dizem respeito também às questões da sexualidade, seja da criança, do adolescente ou dos pais e de toda a dinâmica familiar. Este não é um fenômeno que esteja restrito a uma determinada classe social, como já se quis acreditar, mas está presente em todas as esferas do social (Giddens, 1993).

Azevedo e Guerra (1989) o definem como o ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança menor

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de 18 anos, que vise estimular sexualmente o menor de idade ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa.

As autoras fazem ainda uma extensa reflexão sobre o duplo processo de vitimação e de vitimização das crianças que vivenciam o abuso sexual. A vitimação estaria mais ligada à violência que caracteriza as crianças menos favorecidas na escala social, numa referência clara a uma relação de macropoder; Dirce, não tenho o texto e gostaria que vc revisse como as autoras vêem (macro e micro) poder e acrescentasse ao texto, se oportuno enquanto a vitimização diz mais respeito aos aspectos interpessoais entre o adulto e a criança, onde a relação de poder envolvida está no nível do micropoder.

Para elas vitimação e vitimização são formas de violência. O processo de vitimação produz “crianças de alto risco” e o processo de vitimização resulta em “crianças em estado de sítio”. Elas estão entendendo violência como

“uma realização determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos inter- pessoais. Em lugar de tomarmos a violência violação e transgressão de normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria, numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa . esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência.

Portanto, tanto num caso quanto no outro, estamos diante de uma relação de poder, caracterizada num pólo pela dominação e no outro pela coisificação (resultante e complementar). Como já se mostrou, o que varia é a natureza da relação de poder envolvida: macropoder, no caso da vitimização; micropoder, no caso da vitimização.”(Azevedo e Guerra, 1989, p.46)

Ainda estabelecendo conexão com o poder (e seu abuso, a opressão), Azevedo e Guerra utilizam a expressão “criança em estado de sítio”, significando que a vítima de abuso sexual está desprovida de liberdade e do uso da palavra, tal como acontece em situações de exceção política, onde cidadãos perdem o direito de se manifestarem, inclusive sendo submetidos às mais diversas formas de censura e, em especial, à censura verbal. Como é sua liberdade que está em jogo, o sujeito se percebe totalmente sem controle da situação externa, podendo ver estremecer suas referências internas, dependendo do nível de pressão ao qual estiver sendo submetido. Da mesma forma, a criança ou o adolescente em “estado de sítio” também pode ver ameaçada sua estrutura psíquica.

O incesto é uma forma de abuso sexual que pode ser definida como qualquer relação de caráter sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, entre um adolescente e uma criança ou ainda entre adolescentes, quando existe um laço familiar, direto ou não, ou mesmo uma mera relação de responsabilidade (Monteiro Filho, 1992). Na cultura a autoridade do adulto sobre a criança é soberana, o que pode explicar a dificuldade das crianças em se afastarem de seus agressores (Cohen,1993) e denunciar os fatos. Não podemos deixar de considerar que o abuso incestuoso também rompe com um contrato social e com certa função protetora da família, historicamente definida. Isso pode levar a um “pacto de silêncio” em torno dos fatos abusivos, a partir do sentimento de vergonha e medo de desestruturar a família.

O abuso sexual pode trazer para a criança ou o adolescente conseqüências orgânicas e psicológicas. Contudo, com exceção de ataques sexuais com violência, praticados por desconhecidos, a maioria dos casos ocorre de forma repetida, dentro de casa, sem violência e sem evidências físicas, sendo que só 15% dos casos deixam sinais de abuso físico (Pires, 1998). Os episódios podem envolver sedução, possibilidade de prazer vivido culposamente, a negação dos fatos e o estabelecimento do pacto de silêncio. Se a violência provoca graves traumatismos, pode também atenuar o sentimento de culpa da vítima, já que a criança não desempenhou um papel ativo.

A agressão sexual pode ser encarada como uma questão de gênero? Há uma constatação estatística de que, no abuso sexual, a grande maioria de agressores é formada por homens, ao mesmo tempo que as vítimas são também, em sua maior parte, do sexo feminino. Contudo, sabemos também que a violência não é um atributo natural da masculinidade, como nos mostra Gary Barker (2002), ao refletir sobre como os homens são socializados e como este processo pode levar à violência, de todo tipo. É uma exigência da cultura machista que o homem demonstre sua virilidade de forma violenta e ele é educado para isso desde a mais tenra infância, em um padrão que inclui a ocultação de seus sentimentos e a percepção de que as mulheres são seres frágeis, não muito racionais e até certo ponto inferiores. Estudos antropológicos e culturais americanos recentes sugerem que a mídia projeta imagens e cria padrões de subjetividade, relacionais, que ensinam os homens a silenciar sua vulnerabilidade transformando em objetos e possuindo os corpos das mulheres e meninas (Tomaselli e Porter, 1992). Sabemos com certeza que em todas as culturas e em todas as épocas, existiram homens pacíficos e que em todas as culturas também existiram mulheres violentíssimas

Seguindo a linha da investigação do poder, que nos interessa, a autora Heleieth Saffiotti (1997) afirma que raramente se tem notícia de violência sexual sendo praticada por mulher. Não apenas a condição subordinada da mulher explica este fato, mas também outros fatores como a maior repressão sexual de que ela é alvo e outros componentes da socialização feminina.

Sabemos, contudo, que o abuso sexual cometido pelas mulheres bem como suas conseqüências são freqüentemente minimizados (Giddens, 1993). Os efeitos tendem a serem considerados menos importantes do que os cometidos pelos homens. A lógica que rege este raciocínio ancora-se numa cultura fálica que atribui “poderes mágicos” ao membro masculino, pois, afinal, “que mal poderiam elas provocar sem um pênis?” (Saradjian e Mignot,1999):

Em 1995, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro contabilizou 1,5 estupro diário de meninas. A Organização Pan-Americana de Saúde e a Organização Mundial da Saúde estimam que apenas 2% dos casos de abuso sexual contra crianças em que o autor é um parente próximo chegam a ser denunciados à polícia. Estudos apontam que os casos de abuso sexual incestuoso atingem principalmente meninas entre 7 e 10 anos (Ministério da Justiça/SNDH, 1998).

Apesar de não estudarmos aqui a prostituição infantil, pensemos que crianças são utilizadas sexualmente e sustentam um próspero comércio e tráfico. Pesquisa do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) mostra que as meninas sexualmente exploradas têm entre 12 e 16 anos e alerta que também há muitas meninas entre 4 e 7 anos nesta situação. De acordo com a fonte, a exploração

sexual gera lucros para uma rede criminosa que inclui políticos, caminhoneiros, motoristas de táxi, donos de bares e boates, policiais, agências de turismo, hotéis, agências de modelos, fotógrafos e shopping centers. As formas mais comuns de aliciamento são as falsas agências de empregos para crianças em casas de família, lanchonetes e restaurantes, com promessas de escola e salário. O ganho das meninas nesta situação é muito reduzido e suas dívidas são freqüentes. A prostituição infantil como atividade lucrativa está sempre vinculada à economia local, falemos nós dos garimpos do Norte, do (porno)turismo no Nordeste e outras regiões, na prostituição de meninas vinculada às rotas do narcotráfico e a sua distribuição, como no Centro-Oeste e no Sudeste e na exploração sexual de meninos e meninas de rua, no Sul do país* (UNICEF, 1998, Gilberto Dimenstein, Dirce, Magda, não tenho a referência).

Heleieth Saffiotti (1997) afirma que, para cada nove meninas vitimizadas sexualmente, há um menino nas mesmas condições - não podemos deixar de pensar que a definição de estupro, na lei brasileira, por exemplo, é a de um crime contra a mulher. Os dados de Saffiotti derrubam a maior parte dos mitos consagrados pelo senso comum. A maioria das vítimas são meninas até 6 anos de idade, não é portanto uma jovem cuja beleza e sexualidade ofereçam uma forte tentação. O pai biológico representa 69,9% dos agressores, o que derruba mais uma vez a idéia do estranho que ataca. O perfil dos agressores mostra que 44,6% está na faixa de 30 a 39 anos, ou seja não são nem adolescentes nem idosos “perturbados” em sua sexualidade nascente ou decadente, mas homens ainda jovens e presumivelmente viris. Dentre eles, 67,3% são casados ou têm companheira, ou seja, não atacam as filhas porque têm necessidades sexuais prementes e precisam de um alívio para uma tensão sexual insuportável. A análise dos episódios e circunstâncias das agressões, mostram que a maior parte delas é planejada com antecedência e realizada em casa, contando, por exemplo, com a ausência da mãe e/ou de outras pessoas que pudessem testemunhar o abuso. Não se trata, então de um ato impulsivo, que exclui a razão.

O abuso numa família é provavelmente um aspecto da sua dinâmica que envolve uma forma particular de articular poder, intergeracionalidade, a dialética do público e do privado, as formas de lidar com seus segredos, enfim, toda uma cultura familiar que está articulada com outros aspectos. Há provavelmente a vivência de outras formas de violência (falamos do silenciamento da criança) que por sua vez, sustentam outras mais invisíveis.

  1. INFÂNCIA, ABUSO, CONSTRUÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS

Como trabalhamos o conceito de infância como uma construção sócio- histórica, consideramos que também o conceito de abuso sexual tenha sido fruto de uma construção cultural, que se fez a partir da primeira. Poderíamos afirmar que “se não havia ‘criança’, não poderia haver abuso sexual infantil”. Nem sempre a criança foi cidadã, nem sempre foi sujeito de direitos.

A necessidade de contextualização implica entender que o conceito de abuso não é um conceito natural. A dificuldade de definição universal de abuso ocorre porque a violência acontece no interior da cultura e portanto só pode ser definida com base em seus parâmetros específicos. Contextualizar o conceito de abuso sexual é poder sair do âmbito da moral e do horror ao qual somos remetidos quando lidamos com ele:

“Contextualizar o abuso sexual infantil não significa descaracterizar a violência do ato, mas sim mostrar que ele é violento na nossa cultura que, a partir de sua definição do que seja um ato de violência, o decodifica desta forma. (…) Nessa perspectiva, torna-se fundamental àquele que vai atender uma criança sexualmente abusada poder olhar a gravidade do fenômeno sim, mas não como algo irreparável, da ordem de uma anulação irreversível. Perceber que ele se encontra imbricado numa trama maior, a da sexualidade, significa a possibilidade de estabelecer uma relação com a criança abusada e com sua família, em que haja maiores condições de intervenções objetivas e integradas à própria dinâmica familiar.” (Junqueira, 1998b:435).

A contextualização atualiza os nossos conhecimentos e faz-nos considerar todos os fatores envolvidos na questão. O profissional que atende vítimas de abuso sexual não deve diminuir a gravidade do fenômeno nem relativizar uma violência inaceitável, mas deve ampliar a compreensão da questão para poder ajudar a criança a encontrar uma saída. Um ato só é abusivo e só traz prejuízos se a cultura específica lhe confere significação negativa. Pois bem, nossa cultura considera o abuso sexual infantil condenável em toda e qualquer circunstância e apenas romper com este pacto seria suficiente para causar um grave dano à pessoa abusada. Se o profissional entende o fenômeno de forma contextualizada ele terá menos tendência a fazer julgamentos de valor, e assim, julgando menos, terá mais chance de forma mais eficaz. Lidar com o abuso sexual exige destes profissionais um forte comprometimento, a disposição de estar sempre reavaliando sua postura a cada caso, sempre trabalhando em equipe. Eles estão sendo chamados a tomar decisões sem ferir os desejos de seus pacientes, mantendo o sigilo, mas sem omitir-se e podem ter que interferir em situações que são vistas como pertencentes ao âmbito privado. (Schoor et allii, 1999).

O abuso sexual pode envolver também a falta de limites, em um imediatismo que busca o gozo imediato (Da Poian, 1998). Concordamos com Faleiros (2000) em sua síntese sobre a questão do abuso sexual como uma situação de ultrapassagem de limites: “de direitos humanos, legais, de poder, de papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende, do que o abusado pode consentir, de regras sociais e familiares e de tabus.” (p.15). Abuso de um poder historicamente delineado, que organizou nossas instituições sociais, como a família.

Nem sempre a história oficial consegue dar conta da totalidade dos objetos que formam a história maior. A história das lutas cotidianas, em sua resistência silenciosa, com freqüência tem sido excluída de nossa memória, a história produz também esquecimentos.

Em nível de registro, a história das crianças está diretamente ligada à história das mulheres - já que ambas estão associadas ao domínio do privado - e beneficia-se também da antropologia (Perrot, 1984). A história da criança brasileira nos remete a um resgate de tragédias anônimas, onde se incluem as crianças abandonadas, as crianças vendidas como escravas, as crianças que sobrevivem em instituições e também aquelas que são vítimas de violências sexuais.

Do ponto de vista histórico, verificamos que a percepção da criança como um ser diferente do adulto acontece entre os séculos XVI e XVIII, refletindo-se nos cuidados pedagógicos e psicológicos que passam a lhe ser conferidos. No Brasil, do período colonial aos anos 30 vemos que, se a criança é o grande ausente da História, ela é, por um paradoxo, o seu motor. (Del Priore, 1996).

Através da diversidade de exemplos nos mais variados segmentos da sociedade, poderemos encontrar os elementos necessários para montarmos, qual um quebra-cabeça, a história do respeito e desrespeito às crianças brasileiras, onde se inclui a reflexão sobre o silêncio que envolve o abuso sexual infantil.

Trabalhamos com o modelo de família burguesa, nuclear, regida por normas culturais, em sua maioria herdada do século XVIII, já que a partir do século XVIII, e até nossos dias, o sentimento da família modificou-se muito pouco (Ariès, 1978) As mudanças que vamos percebendo se mostram sobretudo no âmbito da privacidade, da intimidade propriamente dita. Costa (1989) nos mostra que a família privatiza-se cada vez mais. Em primeiro lugar, pais e filhos começam a valorizar o convívio íntimo. Em segundo lugar, os pais passam a ter maior interesse pelo desenvolvimento físico e sentimental dos filhos, educando-os de maneira mais individualizada e levando-os a ganhar maior consciência de suas próprias individualidades. Em terceiro lugar, o amor entre pais e filhos torna-se a energia moral responsável pela coesão familiar. “O sentimento de intimidade familiar, tal como começou a ser concebido e estimulado pelos médicos do século XIX era, até então, inexistente ou despercebido.” (pp. 86-87).

Quando Ariès (1978) nos mostra como a Idade Média pensava o lugar da criança, quando “a transmissão do conhecimento de uma geração a outra era garantida pela participação das crianças na vida dos adultos” (p.230), antevemos a mudança ocorrida no espaço a elas reservado, pois não eram estes seres com os quais nos habituamos a conviver e a proteger. Não se previa em absoluto um lugar destinado ao convívio dos pequenos, e onde, por exemplo, pudesse prevalecer o ensino, que tanto colaborou para este processo de “intimização” dos membros da família (Ariès,1978).

A importância e a força que a educação infantil tem para a estruturação do social foi percebida desde muito cedo pela Igreja, e em especial pelos jesuítas. Era através da “catequização” das crianças que acreditavam poder atingir o âmago da sociedade, transformando o mundo num universo evangelizado. Crescia a valorização européia da criança, a noção de que Jesus fora criança e que finalmente, realizar a missão através das crianças, seria uma garantia de constituição de progenituras mais angélicas do que diabólicas. A síntese dessa psicologia significava valorizar a criança para que ela valorizasse o objetivo jesuítico na nova terra.” (Del Priore, 1996: 14-15).

No Brasil, a formação econômica e social brasileira - por longo período baseada na escravidão e seu ethos machista não podem deixar de ser considerados como determinantes de certa naturalização da violência contra os mais jovens.

“O adestramento da criança também se fazia pelo suplício. Não o espetaculoso, das punições exemplares (reservados aos pais), mas suplício do dia-a-dia, feito de pequenas humilhações e grandes agravos. Houve crianças escravas que, sob as ordens de meninos livres, puseram-se de quatro e se fizeram de bestas.” (Goés, 1999: 186).

Lilia Lobo (1997) mostra o quanto nossa história de maus-tratos às crianças, sua utilização sexual e seu tráfico está ancorada em hábitos opressivos escravistas. A escravidão é também a história do hábito corrente do estupro das mulheres e ciranças negras, de sua venda e empréstimo a outros homens para lucro ou como um presente, de sua exploração como reprodutora, ama de leite ou prostituta:

“Se mulher, com certeza passaria, já mocinha, quase menina, por estupro de seu senhor, tentaria vários abortos, seja porque não desejava a mesma condição miserável para seus filhos, seja porque a cor mais clara de seu bebê denunciaria o seu adultério e a condenaria à morte por seu companheiro negro. Poderia ter também seu filho arrancado dos braços para nunca mais vê-lo, a fim de que lhe sobrasse mais leite para o filho da senhora, ou para servir de ama de leite de aluguel a outras crianças. Poderia também sentir-se forçada a colocar seu bebê na roda dos expostos, na esperança de que, quando crescesse, ganhasse a liberdade.” (p.15).

Nem a proibição do tráfico nos anos 50 do século XIX libertava os recém- nascidos de mãe escrava. A Lei do Ventre-Livre de 1871 pode ser considerada ainda como ”o triunfo das mentalidades antiquadas e perversas”, como afirma Queirós Mattoso (1996: 93), pois os senhores tinham a prerrogativa de escolher a forma de ”libertação” que lhes conviesse até que as crianças escravas completassem oito anos. Durante esse tempo, a criança já teria tido oportunidade de demonstar suas habilidades e, sendo assim, os senhores acabavam prendendo pelo trabalho os filhos de suas escravas quando isto lhes convinha. Esta Lei parecia dar liberdade às crianças escravas nascidas no Brasil, contrariando os costumes jurídicos da época, consoantes com o direito romano

que afirmava que toda criança nascida de mãe escrava seria escrava. A rigor, a situação da criança escrava não sofreu grandes modificações com a Lei do Ventre Livre. No Rio de Janeiro predominavam os escravos adultos, mas poucos chegavam aos cinquenta anos; e as crianças representavam apenas dois terços em cada dez cativos (Abreu, 1999). Poucas crianças chegavam a ser adultos, sobretudo quando do aumento dos desembarques de africanos no porto carioca. Compensava mais comprar um escravo adulto que criar uma criança. “(…) escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos; dentre estes, dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80 % até os cinco anos.” (Goés, 1999:177). Criança escrava - e todo escravo - era dessubjetivada, uma coisa, uma propriedade.

Foi numa época em que o Brasil já tinha dificuldades em manter o tráfico escravo por força das pressões internacionais e, mais especificamente das pressões inglesas, que finalmente o comércio escravista acabou. Nesse momento as preocupações da sociedade européia estavam voltadas para a reorganização do espaço social e econômico, onde não havia mais lugar para ideologias de ordem escravocrata. Sabia-se que a estrutura econômica sob a qual estavam fundamentadas as trocas continuavam a ser escravistas, mas as aparências precisavam ser resguardadas. Havia na Europa um aparato social, político médico e jurídico que exigia uma reordenação também da vida nas colônias para fazer frente à nova ideologia vigente. No final do século XIX, acompanha-se uma política jurídica, e também médica, preocupada com a formação de trabalhadores e cidadãos sadios, moral e sexualmente. A vida sexual e amorosa de toda a população passava a ser preocupação dos governantes e “um assunto de interesse público, em função da necessidade, sob o ponto de vista jurídico e médico, de se cuidar da educação das gerações futuras e dos caminhos de construção da ‘ordem e progresso’”. (Abreu, 1999:290).

Depois da proclamação da República, o Brasil passou por um processo de europeização conhecido como Belle Époque. Esse início da República foi marcado por graves crises econômicas, onde estavam presentes a inflação, o desemprego e a superprodução do café. Sendo assim, a nomenclatura de Belle e sua atrelada europeização não dizia respeito à totalidade da população, mas restringia-se às camadas dominantes. Aqueles que haviam sido libertos encontraram-se numa situação de completo abandono e sem direito à voz social na sociedade brasileira. O racismo torna-se uma realidade presente na vida social brasileira, definindo papéis sociais, sem excluir as crianças do preconceito:

“Assim em fins do século XIX, quando as instituições de caridade brasileiras registravam um crescimento vertiginoso do abandono de meninos e meninas negras, foi também o período que deu início à mudança do status jurídico da infância carente. Se até então os meninos e meninas sem família eram vistos como anjinhos a serem socorridos por instituições misericordiosas , eles passam agora a ser encarados como “menores abandonados”, membros mirins das “classes perigosas”, que deveriam ser isolados do convívio social, em asilos destinados a esse fim”. (Del Priore: 2001: 271).

Informados pela História, constatamos o endurecimento das leis para o controle da infância, quando encontramos, por exemplo, uma progressiva redução da idade penal entre o início do século XVII e o final do século XIX. Desde os tempos do Brasil-Colônia, - de 1603 -, que as Ordenações Filipinas consideravam que o sujeito a partir dos 17 anos era passível das mesmas penas do adulto. Em 1830, o Código Criminal do Império estabeleceu a penalização a partir dos 14 anos de idade e o Código Penal de 1890, que pela sua rigidez nem chegou a ser cumprido, determinou que a criança era passível de pena a partir dos 9 anos; medida esta que só foi modificada em 1921, quando foi elevada para 14 anos a idade mínima para punir uma criança1.

Em 1927, foi criado o primeiro código de menores, tendo sido a primeira consolidação de leis sobre assistência e proteção a menores. Pela primeira vez a legislação brasileira expressou com toda clareza os alvos do controle jurídico e reconheceu duas variantes possíveis no universo da pobreza: o abandono e a criminalidade.

O Código Penal de 1940 resolveu a situação relativa ao limite de idade para responsabilização penal, excluindo os menores até 18 anos desta esfera. Neste mesmo ano, criou-se o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), subordinado ao Ministério da Justiça, quando se verificou uma mudança na política oficial, que se constituiu num aparato de natureza essencialmente jurídica, para tratar a temática da pobreza e da delinqüência infantil.

Dois anos depois de sua criação a UNICEF se instala no Brasil, em 1948. Em seguida, acompanhamos, em 1959, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, proclamada pelas Nações Unidas, na qual à família é atribuída a prioridade sobre a assistência à criança. Nessa época, abre-se espaço para pensarmos na possibilidade de encaminhamento de uma criança para uma família substituta, mas ainda não se abre mão de que seja uma família e não uma instituição, quem deva se ocupar da criança.

` `Durante a década de 50, os casos de maus-tratos começam a ser denunciados. Nas décadas que se seguem a criança vai conquistando espaço no campo social. “a questão do menor no Brasil republicano somente passou a ser enfrentada em meados dos anos 70, através de denúncias regulares na imprensa contra a situação em que se encontravam as crianças, principalmente após o golpe de 64 e o fracasso do milagre econômico. Foi com a indicação de 1978 como Ano Internacional da Criança que a história da criança no Brasil e de sua repressão começou a ser pesquisada. Isso levou à formação de diversas associações que se articularam a outras na defesa dos direitos da criança e que acabaram influenciando o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990.” (Passetti,1996: 146).

` `Nos anos 80 foram divulgados milhões de casos de abuso sexual infantil nos Estados Unidos e muitas crianças foram afastadas de seus pais biológicos, por deteminação judicial, abrindo um precedente importantíssimo para os próximos passos da ONU neste campo (Gonçalves, 2000).

` `Como vemos em Machado (1980), ainda nessa época observamos a desconstrução do modelo punitivo-repressivo no tratamento da infância. Os novos princípios relativos à humanização do tratamento destinado à infância precisavam de respaldo legal. As correntes progressivas conseguem a aprovação em 1988, dentro da Constituição Federal, – artigos 204 e 227 - dos princípios que fundamentam a legislação específica, e que resultaram mais tarde, em 1990, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

` `Em 1989, trinta anos depois da primeira convenção e sob o impacto dos últimos acontecimentos, tem lugar uma nova Convenção da ONU sobre o Direito da Criança. Nesta época se amplia a ótica sobre a atuação da família junto à criança, incluindo o seu direito à sobrevivência, à educação e à proteção contra o abuso sexual e sua conseqüente exploração (Gonçalves, 2000).

` `É nesse contexto que procuramos localizar a importância da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dentre outras conseqüências jurídicas importantes, pertinentes a nosso tema, podemos aqui destacar o Artigo 130 do ECA: “verificada a hipótese de maus tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum” e também obriga a comunicação ou denúncia por parte dos profissionais, em casos de violência contra a criança ou o adolescente, (capítulo II, Infrações Administrativas, Art. 245)

Observamos uma mudança no olhar sobre a criança que, se pobre, anteriormente recebia a denominação de ‘menor’; e agora se torna alvo da tutela pública, passando mesmo a ser vista como candidata potencial à proteção do Estado. Os filhos da classe média e média alta nunca foram chamados de “menor”, termo que era restrito aos filhos dos excluídos2, marcando duas infâncias diferentes. Boarini e Borges (1998) mostram que o “sentimento de infância” foi se constituindo junto com o “sentimento de classe”, adquirindo diferentes formas de subjetividade e uma valoração muito diversa da intimidade (Zamora, 1999).

A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA -, a criança passa a ser objeto de uma lei que se funda no estabelecimento de seus direitos, sendo essa a reversão central que ocorre no plano jurídico com sua divulgação. Este representa um avanço inegável sobre o Código de Menores, pois aponta para os direitos sociais, reforma a imagem do Estado e subordina os mecanismos punitivos aos direitos processuais. O discurso dos direitos da cidadania que sustenta o Estatuto já estavam presentes no imaginário social: a criança quer a

2 Para maior aprofundamento, veja (Rizzini, 1997, Londoño (1996) e Nascimento (2002).

escola, anseia pelo trabalho e deseja a família, pois a disciplina já instalou no imaginário infanto-juvenil a aspiração pela inserção nas instituições sociais, responsáveis pelo controle informal. Esse discurso também veio responder a problemas de ordem econômica e moral, pois era preciso reformular o modelo assistencial-repressivo, para torná-lo economicamente viável.

Parece-nos que boas leis não nos faltam, mas gostaríamos de refletir sobre as dificuldades de fazer valê-las. Nossa legislação é de excelente qualidade e amplitude, mas sofre muitas restrições na sua aplicabilidade; por exemplo, pela força de algumas instituições conservadoras, como é o caso da Igreja que ajuda, por exemplo, a legislar contra o aborto. Se tomássemos o exemplo fictício de que uma bomba atômica fosse lançada no Brasil e que todas as nossas leis ficassem resguardadas numa “caixa preta”, talvez nos surpreendêssemos com a reação daqueles que a encontrassem. Provavelmente eles teriam motivo para acreditar que vivemos em um paraíso.

Se nossa legislação dispõe de aspectos tão positivos na sua elaboração, porque será que não são aplicadas? Quais são os reais entraves para a plena implantação do Estatuto?

O interesse geral pelo tema do abuso sexual infantil surgiu a partir da segunda metade do século XX, atrelado às reviravoltas pelas quais passava o mundo depois da Segunda Guerra Mundial, e às conseqüentes mudanças ocorridas nas relações humanas e nas forças produtivas. Como só podia ter acontecido, o conceito de força de trabalho precisou acompanhar as mudanças que marcavam essa nova ordem sócio-econômica, quando também o lugar ocupado pela mulher passou por redefinições. A mão-de-obra masculina sofreu baixas durante a guerra e a mulher ocupou relevante papel na produção e na direção do lar, enquanto o homem se encontrava nos campos de batalha ou apenas se refazendo dos traumas gerados pela guerra. Essa dinâmica explica o redimensionamento da contribuição feminina na reestruturação do social (Azevedo e Guerra,1993).

É em meio a este clima que as mulheres brasileiras conquistam garantias jurídicas e legais, como atesta, por exemplo, o Estatuto da mulher casada, de autoria do jurista Orozimbo Nonato, em 1962, redefinindo o lugar da família nessa sociedade em formação. Às conquistas femininas e à revolução sexual, protagonizada pelas mulheres, vão se atrelando as conquistas das crianças, que passam a ocupar um lugar de destaque nessa nova ordem familiar basculada.

Ampliando o foco desta reflexão sobre o aspecto das especificidades históricas de nossa violência doméstica, gostaríamos de trazer mais uma vez as reflexões de Azevedo e Guerra quanto a uma possível periodização da violência doméstica contra a criança. Do final do século XIX até à primeira década do século XX é o período que as autoras chamam de “salvação de crianças”, quando começam as denúncias de maus-tratos e a tendência à institucionalização das vítimas. Os vinte anos seguintes, ou seja, até 1930, são chamados de “era progressista” quando se privilegiou a problemática relativa à negligência materna. Já a década de 30, com sua crise econômica e o período do pós-guerra, não deu importância especial às questões relativas à violência contra a criança.

Na França, o psicanalista francês Cyrulnik (1999a), constata que, a partir dos anos 50 na França, a classe médica começou a denunciar diversas práticas de maus-tratos às crianças, contribuindo para dar legitimidade à causa do combate à violência infantil. O ano de 1962 é tomado como marco por causa da publicação do livro Síndrome da criança espancada, por R. Kempe, que levou a sociedade francesa à promulgação da lei de 10 de julho de 1989, que reconheceu legalmente a noção de maus-tratos e sua conseqüente reconstrução.

A crescente mobilização dos anos 60 em favor das minorias historicamente oprimidas chama atenção para as crianças, vítimas das guerras e indefesas contra toda crueldade adulta. A década de 70 acaba com a hegemonia médica no trato do problema e aparecem novas possibilidades de atendimento às crianças vítimas de violência doméstica. (Soares, 1999).

No nosso país, o processo de reconhecimento da criança como portadora de direitos culmina com a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, onde encontramos determinações sobre a necessidade de prover com atendimento psicológico as vítimas de abuso sexual, como fica claro em seu Art. 87: “São linhas de ação da política de atendimento: III - serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão.”

Em nosso país temos muita dificuldade no cumprimento das leis, onde as transgressões geralmente são aceitas sem grandes hesitações. Às transgressões corresponde um silêncio que se faz acompanhar da impunidade característica do descumprimento das leis.

Cada país tem sua forma específica de transgredir. Não se pode esquecer que a quebra do tabu do incesto está inserida num contexto maior, em que a dificuldade brasileira de respeitar leis, em absoluto, não daria conta de explicar. Entretanto, cabe uma reflexão sobre este aspecto cultural que, sem dúvida, ajuda a explicar as condições que fazem as transgressões assumirem a atual conotação. Ou seja, mais uma vez constatamos a importância de contextualizar a questão do abuso sexual infantil.

Devemos estar alerta para fatores como a erotização da sociedade, o que é claramente visto na mídia e nos apelos do consumo, inclusive sexual, o que “vêm estimulando nossa população infanto-juvenil a uma erotização precoce e ao consumismo, como atestam as Tiazinhas, Xuxas e Carlas Peres, seus programas na TV, suas danças e suas grifes.” (Faleiros, 2000:47).

Assim não é de se estranhar que encontremos seu reflexo na falta de limites que tantos pais se permitem ao transgredirem as leis que levam ao incesto e na banalização da violência, desde nossa origem colonial. Como afirma Chauí (1992): “A ‘lei de Gerson’ funciona porque, malgrado os pruridos morais de seus praticantes, ela exprime a solidão e o medo diante de uma sociedade sentida como perigosa e hostil” (p.388). Trata-se do que poderíamos chamar de um processo de perda da voz social, numa sociedade que silencia diante da violência, quando poderia reivindicar seus direitos de cidadãos violados.

Gostaríamos de refletir sobre a singularidade da violência doméstica brasileira, buscando desde os tempos coloniais, escutar as vozes dessas crianças, que não tiveram sua presença devidamente registrada e assegurada pela história oficial. Revisaremos, ainda que brevemente, alguns elementos de uma trajetória histórica que nos permita dimensionar a progressiva construção da criança como sujeito de direito.

Acreditamos que também seria importante que o silêncio dessas crianças abusadas pudesse servir de alerta para pensarmos sobre a disparidade entre as grandes denúncias e a continuidade dessas práticas. Por que será que não ouvimos os gritos desse silêncio? Será porque eles já estão ecoando a tanto tempo que já nos acostumamos?

  1. O paradigma repressivo para tratar a infância e adolescência nunca foi abandonado no Brasil. Atualmente tramitam no Senado e na Câmara vários projetos de lei visando a redução da maioridade penal de dezoito anos para dezesseis e até menos. ↩︎

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