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Precariedades nas Relações Contemporâneas Do Alimento ao Afeto

Este artigo reflete sobre o paradoxo da cultura atual, explorando os vazios existenciais e suas tentativas de preenchimento, manifestos também através dos transtornos alimentares.

Precariedades nas relações contemporâneas – do alimento ao afeto: Precariousness in the post modern relationships - from food to affection:

Dirce de Sá Freire, doutora em Psicologia Clínica pela PUC/RJ, psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ,

Eduarda Ferreira Amaral, psicóloga Mariangela Venas, psicóloga Renata Azevedo Teixeira, psicóloga

Resumo

A sociedade contemporâneas tem a marca dos excessos e do desamparo. De tempos em tempos, a sociedade dá vida a padrões específicos de transtornos, evidenciando o seu próprio desassossego e as perturbações em relação a sua época. Este artigo tem a intenção de refletir acerca do paradoxo da cultura atual, apontando, ao mesmo tempo, os vazios existenciais e suas tentativas de preenchimento, os quais também se expressam através dos transtornos alimentares. Palavras-chaves: Limites, gozo, transtornos alimentares e narcisismo.

Abstract

Postmodern society is characterized by excess and abandonment. From time to time, society gives birth to specific kinds of psychological disorders, revealing its anxiety towards its time. This paper intends to investigate the paradox of the contemporary society, stressing, on the one hand, its existential void, on the other, its attempts to fulfill this feeling, which also express themselves through eating disorders.**

Keywords: Setting limits, lust, eating disorders and narcisism.

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Introdução

(…) Hoje as drogadições, os transtornos alimentares, os quadros delinqüenciais e as depressões graves desafiam os analistas a repensar a subjetividade. (Kehl , M.)

É cada dia mais evidente a grande demanda de sujeitos acometidos pelas chamadas psicopatologias modernas, tais como a depressão, as compulsões, os transtornos de ansiedade e os transtornos alimentares.

Esta tendência se configura como um reflexo da sociedade contemporânea, a qual cultua um ideal de felicidade eterna e ilusória, que envolve, entre outras cobranças, um padrão inatingível de beleza,

uma carreira bem sucedida, uma vida social exposta e movimentada, disseminando uma banalização dos excessos.

Em pacientes portadores de transtornos alimentares, o uso disfuncional da comida aponta para uma tentativa de dar continuidade ao que faltou nos primórdios da vida psíquica. A vivência do corpo a partir de uma imagem corporal distorcida aponta para a dificuldade com o limite e a inoperância diante do excesso. Nestes casos, a questão da representação do corpo fica evidente, seja na anorexia e na bulimia, com a preocupação excessiva em relação ao controle do peso, seja na obesidade, com a desconsideração do ganho excessivo de peso.

A sociedade atual vive uma ambiguidade entre avanços nas diversas áreas do conhecimento, que, ao invés de serem acompanhados por um maior desenvolvimento de maturidade psicológica, têm corroborado para fomentar sentimentos típicos da fase pré-oral do desenvolvimento humano. De fato, pode-se evidenciar que as psicopatologias atuais apresentam a exacerbação de características infantis, quais sejam: a ausência de noção dos limites, um período curto de satisfação dos desejos e o narcisismo extremo com profunda dificuldade de enxergar o outro. Em comum, essas características remetem à indiferenciação sentida pelo bebê em relação ao seu mundo externo e à própria mãe. Parece que as facilidades da contemporaneidade têm ensejado o renascimento da ilusão de completude narcísica infantil. Os tempos atuais têm trazido certa inquietação. Os avanços científicos e tecnológicos criaram a falsa impressão de que todos os problemas humanos podem ser superados, e que o desejo humano pode ultrapassar todo e qualquer limite. Nesse contexto, no qual se pretende que os indivíduos tenham o controle completo de suas vidas, parece que há uma busca intensa por uma condição de destaque. Ninguém mais pode ser mediano, e empreende-se um grande esforço em afirmar e divulgar a excelente condição de vida de que se desfruta, repleta de viagens, festas, consumo dos últimos lançamentos do mercado e que tais…

A responsabilidade pelas imperfeições inerentes à condição humana recaem sobre o próprio indivíduo, já que se acredita que ele teria recursos para se tornar a versão mais bem acabada de si próprio. Nesta tentativa de atingir a perfeição, o que foge do socialmente esperado pode gerar uma angústia incomensurável, produzindo uma sensação de desordem, na qual tudo parece banalizado. A busca pelo preenchimento do vazio leva a um comportamento hedonista. Não é possível suportar

nenhuma lacuna, tudo deve estar pleno e tamponado.

… a sensorialidade hedonista, buscada por si mesmo, seria uma maneira do sujeito fugir de uma realidade que seria insuportável e que ao mesmo tempo ele se sentia impotente para transformar. (BIRMAN, J., 2012, p. 89)

É interessante notar que justamente um dos fatores essenciais à organização da personalidade é altamente menosprezado na sociedade atual, qual seja o papel do outro. Como frisa Birman, o hedonismo que impera na sociedade de consumo vê o outro não como barreira ao que não se pode fazer - interdição e imposição de limites -, mas como mais um elemento a ser utilizado para a satisfação dos próprios desejos.

Na atualidade os transtornos alimentares são a expressão das dificuldades presentes nas precariedades das relações de afeto que envolvem o ato de comer. Quando a relação dual mãe-bebe não acontece a contento, o sujeito terá dificuldades para se constituir e para aceitar sua condição de ser desejante.

A obesidade já teve seu lugar na história da estética e, tal como a feiúra, é uma questão cultural. Entretanto, desde os primórdios da contemporaneidade, quando identificamos o início do culto à magreza, vemos que ficou reservada à obesidade o lugar da exclusão, sobretudo às mulheres, que, na atualidade, são excluídas do “mundo fashion”, daquele que é aceito pela mídia e que determina o padrão estético aceito. O mundo globalizado, no qual as distâncias e os espaços foram reduzidos, também ficou menor para os obesos. Em sua ambigüidade, a globalização disseminou os hambúrgueres e as fritas, que são os representantes máximos desse aumento de peso. Nestes tempos de “fast food”, a obesidade ganha então uma nova dimensão, passando a ser considerada um problema de saúde pública, saindo da polaridade feio x bonito ou aceito x excluído, para entrar na questão: morbidade x saúde.

Por que um falha nas interações precoces ou numa maternagem desajustada poderiam incorrer no aparecimento de transtornos alimentares? Melhor dizendo, que haja transtorno é até esperado, mas por que um transtorno alimentar? Qual seria a especificidade desta função (alimentação) no processo de constituição de um sujeito que acaba por emergir como disfuncional quando o processo “normal” de desenvolvimento não ocorre?

A alimentação, entre todas as funções básicas para nossa sobrevivência, desempenha papel fundamental na constituição do que somos, uma vez que é a que mais concretamente representa a ideia de construção de um ser. Comer é incorporar algo, ou seja, fazer do alimento componente do corpo. Literalmente, a comida dá corpo ao ser (a comida dá corpo ao Corpo). Assim, o ato de comer se torna indissociável da constituição tanto do corpo como do “ser” que o habita. Alimentar-se e constituir-se são, desta forma, um único processo.

O desamparo resultante da ausência de limites: angústia

Se não é possível suportar o vazio interno, faz-se necessário buscar formas de preenchimento… Talvez, por isso, uma imersão tão massificada em drogas, comida, sexo, consumo, violência. Tudo é exagero; tudo é espetáculo, tudo é excesso, e tudo é vazio. O sujeito da contemporaneidade é guiado por um imediatismo dominante, onde não há tempo a perder e a ideia de rapidez alimenta a lógica das impossibilidades, imperando um automatismo do fazer. Sendo assim, não seria difícil imaginar que essa impossibilidade de lidar com a falta leve a uma aceleração radical da “sociedade do espetáculo” onde o sujeito se depara com um imenso vazio existencial, abrindo espaço para toda espécie de somatizações.

Se não temos condição de significar nossas vivências, (passando pela temporalidade), o circuito psíquico não se constitui, permanece apenas a nível corporal. Essa excitabilidade do corpo transforma-se em angústia, na medida em que se apresenta como uma excitabilidade. O que vemos, então, é a hegemonia da ação, em detrimento da reflexão e do sentido.

Ehrenberg (1998) nos fala a respeito do esgarçamento dos limites através da constatação de que os parâmetros contentores revelam um indivíduo contemporâneo marcado pela tônica da insuficiência, na qual a depressão ocupa um lugar de destaque. Assistimos a um declínio do modelo disciplinar de gestão de condutas e de interdições que regulavam as normas sociais, fazendo prevalecerem as normas que incitam o indivíduo à iniciativa individual. Como consequência dessa situação, encontramos a atualidade marcada por uma larga busca pelos psico-fármacos, mostrando que a medicalização da vida parece desenhar o comportamento em geral da sociedade contemporânea. Além de uma expectativa pela prescrição médica, está presente uma certa ânsia por respostas rápidas frente às necessidades, numa busca por soluções imediatas para os incômodos. E a

tendência à adição ou à depressão aparecem como expressão da impotência de viver, quando o indivíduo entra em pane pela incerteza de sua suficiência em dar conta com maestria das exigências performáticas a que se vê submetido. O cenário clínico atual é marcado por um excesso de tensão, onde esse sujeito contemporâneo é responsabilizado por si mesmo, tendo parâmetros esgarçados como referência.

A angústia aparece como uma variação do desamparo, que não possui representação psíquica, fica apenas inscrito no corpo como fonte de somatização. Freud aponta a angústia como produto do desamparo mental da criança, sendo o nascimento a primeira experiência de angústia do ser humano. O nascimento constitui-se como uma convulsão excitatória, cujo sentido ainda está por vir e, sendo assim, a função materna tamponaria esse desamparo na medida em que nomeia o caos pulsional e prenuncia o investimento objetal.

O cuidado materno na primeira infância é de fundamental importância, pois é nessa fase que a criança recebe um primeiro banho de sentido. O amor seria, então o primeiro injetor de sentido e, nesse caso, a angústia caótica pode vir a adquirir um nome.

Assim, um outro funcionamento psíquico se instaura na criança, na medida em que uma nova função é atribuída a uma descarga motora, ou seja, o choro passa a ser uma ação específica, visando um objeto. Uma descarga motora inespecífica é, então, transformada em ação específica, com uma intencionalidade.

A capacidade de elaboração do ego, ao longo de toda a sua existência, vai constituir-se como um amparo. O ser humano está condenado a buscar o sentido nas suas vivências, sentido esse que sempre será construído.

Podemos perceber, nessa lógica, que o sujeito atua pela incapacidade de tolerar uma tensão acumulada de estímulos. A atuação se apresenta como uma ação mais regredida e precária do ser humano. Nesse caso, impera o campo da pulsão, ocorrendo uma ação inespecífica já que a pulsão não tem objeto, não tem representação.

O Princípio da Realidade se apresenta parapossibilitar o Princípio do Prazer, e a realidade em si está sempre marcada pela falta e pela insatisfação. A realidade é limitadora sim, ela possibilita o prazer que é o gozo domesticado. Se a castração não se inscreve, emerge o excesso, a compulsão ou a falta da lei, pois não há anteparo.

A única saída para a angústia, então, será a elaboração. No campo das doenças atuais, existe a tomada do corpo em sua dimensão mais concreta, apontando para excessos motivados pela angústia. Tais afecções revelam impasses do corpo em virar história, vide um declínio do campo da representação. Essa representação necessita de um sentido visto que, ao representarmos, alcançamos um apaziguamento, ainda que parcial, da pulsão.

Nossa subjetividade tem como matriz a pulsão e a excitabilidade. Somos sujeitos em conflito, e tornar-se sujeito exige um trabalho a ser feito. Faz-se necessário dar um sentido a essa força para que o desejo possa emergir.

O que vemos, no entanto, nos tempos atuais, em que não há tempo para a elaboração, são vivências que não atingem o estatuto de repertório existencial. A ansiedade de querer realizar todas as vontades, com dificuldade de suportar a falta, aponta para a ansiedade da não inscrição da castração, estamos diante da hegemonia do corpo.

A castração (ou a barra), nesse sentido, abarca a função de garantir o prazer como uma contenção, que envolve uma constância, o que não parece interessar ao mundo contemporâneo e a cultura dos excessos. Nessa cultura, está em jogo a compulsão à repetição, a busca pelo impossível e a consequente insatisfação diante do resultado. O adiamento da satisfação e a tolerância do desprazer trazidos pela realidade como uma forma de garantir o prazer são questões cruciais para os dias de hoje em que a espera e o adiamento não fazem mais parte do atual “modus vivendi”.

Na atualidade, o que se vê são sujeitos performáticos, mas com o universo simbólico muito empobrecido (alienação atual), em função do campo da representação se encontrar em declínio. O sentido é o que vai nortear a excitação e o excesso no corpo, e se isso não ocorre o excesso se transforma em angústia.

O consumo do outro

O ritmo acelerado e consumista que prevalece na sociedade atual parece limitar a capacidade da mãe de ser “good enough” (ou e dos cuidadores-referência) ao longo do desenvolvimento infantil. Se, no passado, as figuras de autoridade eram percebidas pela criança como fonte de amor e limites, no presente, elas são vistas como pessoas que têm a obrigação de lhe proporcionar oportunidades ilimitadas de gozo.

A fim de compreendermos a modalidade de sofrimento existente nos sujeitos atuais, chamados por Jean-Pierre Lebrun de “neo-sujeitos”, é preciso voltar o olhar para aquilo que está mais gritante nestes sujeitos: seus corpos. O corpo possui um lugar/função fundamental na constituição do sujeito, pois é a partir da formação de um ego corporal que se constitui o ego psíquico.

Há uma espécie de “lenda” na psicanálise que fez com que durante muito tempo os estudiosos tratassem a psicanálise como uma ferramenta que não considerava o corpo. Maria Helena Fernandes nos traz uma leitura de Freud, em seu texto intitulado “Corpo”, mostrando a importância deste na obra freudiana, desde os seus primórdios. Não há como falar de psiquismo antes de haver corpo.

“…O corpo é o palco onde se desenrola a complexa trama das relações entre o psíquico e o somático, ou dito de outro modo, o conjunto das funções orgânicas em movimento habita um corpo que atravessado pela pulsão e pela linguagem constiuída pela alteridade, é também o lugar da realização de um desejo inconsciente.” (FERNANDES, M. H., 2005, p.116).

É interessante notar um efeito agravante deste retorno do adulto contemporâneo a padrões de sentir e se comportar da tenra infância. Diferentemente do que ocorre com os adultos, as necessidades do bebê são mais básicas e conseguem, em grande medida, serem satisfeitas pela mãe. Além disso, naquela fase do desenvolvimento infantil, o amor materno exerce função tamponadora, que atua como um antídoto contra a dor e o desamparo em face das impossibilidades e frustrações da vida. Conforme as pesquisas de F. Tustin, o bebê cuja mãe é responsiva ou, como diria Winnicott, uma mãe suficientemente boa, irá adquirir, de modo gradativo, a consciência de que existem dois e não apenas um. Este processo ocorre de modo ritmado, oscilando entre “uma ilusão de continuidade física e uma quebra na continuidade corporal”. É por oscilar entre a unidade e a dualidade mãe-bebê que a separação pode acontecer de modo não catastrófico.

Dessa forma, o bebê introjeta os limites e impossibilidades da vida de forma amorosa, apreendendo que nem tudo é possível, e que o inalcançável pode ser compensado com o amor, onde é possível não se ter tudo o que se deseja e, ainda assim, ser transitar bem na vida.

O consumismo cultivado na sociedade atual, como já visto anteriormente, estimula os excessos. A onipotência infantil que foi, progressivamente, sendo moldada pelo princípio da realidade, é re- despertada. Dessa forma, a presença externa, que deveria servir como fator estruturante, a qual contribuiria para lembrar ao sujeito de suas limitações, é vista como mais um instrumento disponível para a realização dos próprios desejos. A presença do outro perderia sua função estruturante.

E, mais uma vez, prevalece aqui a lógica da onipotência infantil e da incapacidade de ver o outro como barreira ou como limite do Eu, tal como na tenra infância, quando o sujeito não consegue perceber os limites do mundo externo. Se não consigo me distinguir do outro, não há necessidade de me comunicar com ele, que passa a constituir elemento a ser incorporado, tornando-se “parte de mim”.

O estímulo ao consumo desenfreado e a um desempenho social proeminente aumenta os requisitos necessários para que o indivíduo se sinta satisfeito. Assim, ele tem que estar sempre revendo seus limites. O outro não é mais capaz de lhe trazer a satisfação que ele busca. Como em um fast food de emoções, a satisfação é rapidamente oferecida para que possa ser devorada imediatamente e de preferência sem muitas elaborações e nem tempo para ser digerida.

O que se evidencia atualmente, portanto, é um contexto social tecnologizado que funciona como uma máquina do tempo, a qual recria a fantasia da primeira infância, quando a criança acredita que tudo é possível. O sujeito contemporâneo, assim como o bebê, desconhece seus limtes. Diferentemente da criança, todavia, carece do corte representado pela influência materna que lhe mostra os contornos de seu corpo e as impossibilidades concretas da vida.

O contato com o outro, que serviria como barreira estruturante do ego e obrigaria o sujeito a lidar com desejos outros além dos seus, é reduzido a uma relação utilitarista. O outro serve apenas para satisfazer as necessidades do indivíduo; quando as frustra, é descartado. A esse respeito, cabe

lembrar a importância da função da mãe-suficientemente boa, a qual desempenha um papel de extrema importância para a estruturação do ego infantil, que comporta o binôminio acolhimento- afastamento. Ela deve satisfazer os desejos infantis, mas, ao mesmo tempo, deve ser capaz de evidenciar suas limitações.

Ninguém mais pode lhe ajudar a suprir as inúmeras demandas impostas/afloradas pela sociedade de consumo. Em Psicanálise do Sensível, Ivanise Fontes assinala como a ausência da contenção e do aconchego materno relega o indivíduo à desagradável sensação de vazio corporal e de torpor emocional. Mas como a sociedade atual confere prioridade à soluções imediatistas e materialistas para os problemas, o indivíduo tende a buscar alternativas mais superficiais para as suas angústias, tentando dar satisfação ao corpo, em detrimento de lidar com suas frustrações e limites. Como assinala esta autora,

dentro da inadequação dos estímulos a que vivemos submetidos nos últimos tempos, torna-se necessária a construção de uma armadura, de um escafandro comum a aparência de eu. Mas não passa, na realidade, de um corpo mascarado, de um balão inflado. (FONTES, I. 2010., p. 41)

Assim, o corpo passa a encenar as pressões psicológicas com as quais o indivíduo não consegue lidar. É interessante notar que esta atuação corporal ocorre de uma forma desintegrada. Ao contrário do que se poderia supor, o corpo não passa a refletir os sentimentos do indivíduo de forma sinérgica. O corpo é usado para tentar esconder ou negar as sensações ruins. Ao invés de tentar elaborar sua angústia, o sujeito busca encobrí-las com elementos/substâncias exógenas. E como assinala Fontes, permanece o sofrimento num corpo encouraçado que não permite um maior contato com as sensações.

Júlia Kristeva evidencia o empobrecimento da psique humana na sociedade atual ao mencionar a estranheza das sintomatologias modernas que se expressam por meio de próteses psíquicas, que são utilizadas para dar forma ao sofrimento, sem contudo elaborá-lo. Como numa encenação, o sujeito necessita demonstrar, para si próprio e para o mundo, o que sente. Como não consegue fazê-lo de forma integrada, utilizando sua capacidade de representação, adere à determinadas compulsões para fazer frente aquilo que se apresenta como insuportável. Este é o exemplo da gordura como prótese psíquica na obesidade e do corpo descarnado na anorexia nervosa.

Diante da falta da figura materna como propulsora do limite estruturante, os indivíduos crescem à sombra das suas próprias angústias reveladas por um corpo com sobrepeso ou com falta de peso. Assim, o mesmo corpo cultuado maciçamente na atual sociedade é o corpo marcado pelos excessos. A alimentação deixou de ser um processo natural e de sobrevivência, para se tornar um fardo na vida contemporânea.

E esse comportamento é provocado pelo fato de estarmos buscando respostas nos alimentos para as angústias mais primitivas. Utiliza-se como recurso, sobretudo, a comida… ou a falta dela. Não se tem disposição interna para lidar com os fatos. Percorre-se, em geral, o caminho supostamente mais fácil, aquele que leva à compulsão à repetição. E por meio da culpa presente na busca do prazer desmesurado, encontra-se a punição, a qual leva à repetição do mesmo comportamento.

A linguagem – seja verbal, seja corporal – nessas circunstâncias, se abstém de elaborações. Não há uma reflexão consciente a respeito das dores e frustrações. O corpo vira uma tábula rasa a ser riscada e rabiscada repetitivamente. Apesar do aparecimento de inúmeras marcas no corpo (a gordura ou a magreza excessiva, o excesso de plásticas, tatuagens), o sujeito permanece sem reconhecer sua angústia nele. A cegueira do obeso e do anoréxico em relação às características reais de seu corpo deixa evidenciar a dissociação entre o corpo e a mente experimentada por estes sujeitos. Apesar de eles moldarem seus corpos de acordo com as suas supostas vivências, eles não estão aptos a enxergá-las.

Nessa busca pela perfeição, microcâmeras são introduzidas no corpo, assim como cânulas que sugam gentilmente camadas de gordura entre peles e músculos, transferindo gordura de uma região do corpo para outra, permitindo à mulher “fazer-se mais magra e logo, mais bela”. Hoje, a gordura cresce mais rapidamente entre as classes desfavorecidas que não podem se dar ao luxo de regimes e academias. Mas nada disso é novo. Melhorar as capacidades do corpo, exercícios e cuidados com a pele existem na literatura médica desde Hipócrates e migraram daí para os tratados de educação e saúde da Idade Média e do Renascimento.

É possível perceber certa contradição na falta de espaço na atualidade para despertar as lembranças corporais, aquelas mesmas que, para Ferenczi, continuarão a vibrar em alguma parte do corpo, especialmente aquelas desagradáveis, que somente no corpo poderão ser despertadas.

O que se observa é que ao menor sinal de angústia, estabelece-se de imediato a busca por algo que possa disfarçar o mal-estar, assim, o que temos é uma alma carente em um corpo selado/marcado: excesso (ou falta) de peso, excesso de lipos, botox, tatuagens ou atividades físicas. Enfim, é o corpo que carrega a angústia nas chamadas psicopatologias contemporâneas.

Lugar do analista diante das novas subjetividades

O aparelho psíquico constitui-se como a nossa máquina simbólica que visa a dar sentido ao que se apresenta sem sentido, a esta descarga livre e excessiva a qual somos submetidos, a Pulsão. Para que tenhamos êxito nesse processo, no entanto, cabe ao aparelho psíquico fazer a ligação, abrindo espaço para que o sujeito funcione na esfera do Princípio do Prazer.

Nesse sentido, o Princípio do Prazer já seria uma conquista frente ao caos, ao nonsense, visto que esse funcionamento já pressupõe uma ligação, um sentido que será construído. Quando essa ligação não se efetua, não há o Princípio do Prazer, predomina a vivência do excesso, da incapacidade psíquica de elaboração, do vazio de sentido, ou seja, predomina o Além do Princípio do Prazer, equivalente ao gozo.

O crescimento e desenvolvimento do sujeito pressupõe ações externas para que a criança renuncie a uma satisfação mais imediata, por isso a importância do afeto, da lei, da educação e da cultura. Se essa intervenção não ocorrer, podemos nos tornar sujeitos presos somente à satisfação imediata.

A busca dessa satisfação imediata, todavia, repetiria uma busca da completude, uma vivência primária de satisfação completa, sempre em oposição ao prazer parcial. A idéia de que não há tensão, de que se pode permanecer no gozo leva o sujeito à compulsão.

O imperativo do gozo, tão evidente na atualidade, denuncia a precariedade de elaboração e de reflexão, visto que, permanecendo no gozo, abre-se mão do desejo, que envolveria uma parcialização da satisfação.

Assim, se a psique humana encontra-se empobrecida, incapaz de manter um sistema de representações coerente, fazendo prevalecer a hegemonia do corpo, ao analista competiria intermediar a saída do gozo imediato para o encontro do desejo.

A posição do analista, diante das novas subjetividades, estaria mais voltada para uma “autorização” da renúncia pulsional, diante da exagerada oferta de gozo e ausência de desejo. A ética da psicanálise, nesse caso, se aproxima da ética do desejo envolvendo uma conquista, e o analista hoje deve estar disposto a trabalhar dentro de buracos psíquicos que precisam ser contemplados no aqui- agora da relação, no intuito de estabelecer o caráter constitutivo do desenvolvimento emocional positivo.

A solidariedade, como valor que amalgamava ainda os laços sociais na modernidade, desapareceu inteiramente do cenário na contemporaneidade. O vazio da subjetividade atual é o correlato do mundo que perdeu o sentido, pois as regras e os códigos anteriormente estabelecidos para a promoção da sociabilidade foram subvertidos. (BIRMAN, J., 2012, p.)

O desafio da psicanálise na contemporaneidade, nesse sentido, aponta para a sustentação do trabalho clínico, possibilitando a internalização do dispositivo analítico como um símbolo da estrutura enquadrante. Aliada a essa sustentação do setting, todavia, a postura do analista deve ser a de uma pessoa real que irá construir e aprender junto ao analisando, fazendo uso da teoria e de seu conhecimento para a ampliação de uma escuta atenta ao mesmo. A relação, assim, se constrói de maneira mais igualitária entre analista e analisando, aproximando-se de uma relação mais humanitária (e afetiva) entre ambos.

O analista precisa assumir uma posição “de continente”, necessária à ressignificação e introjeção do limite como fator positivo no funcionamento psíquico do paciente. O afeto se apresenta através da transferência como elemento indispensável para que o paciente possa introjetar esse limite, permitindo à análise ocupar esse lugar de “continência”. Chamamos de “clínica do olhar” a essa demanda clínica tão presente nos nossos consultórios, que requer um manejo clínico no qual, como afirma Nahman: “…será a capacidade de ser do analista que ajudará analisandos com um endoesqueleto psíquico precário a se fortalecerem.” (NAHMAN, A., 2014, p.218).

O mal estar na contemporaneidade pode ser resumido àquilo que não consegue ser dito e está expresso no corpo, numa nítida dificuldade de unir o corpo à palavra. Acreditamos na idéia do corpo como primeiro limite e o alimento como uma forma de afeto, traduzindo-se na necessidade de uma clínica que privilegie a possibilidade do paciente se sentir visto em suas necessidades. Assim a “clínica do olhar” seria “sentir com” o paciente, usando o olhar e a voz como ferramentas diretas daaterapêutica, numa modalidade de intervenção analítica onde as palavras adquiram mais sensorialidade, sem se confundir com uma terapia corporal. Trata-se de buscar fazer frente ao vazio interno deixado pela falta de qualidade da presença, que se traduz em impossibilidade de constituição da ausência enquanto presença em potencial.

De certa maneira a função do analista contemporâneo poderia ser equiparada à função manterna, no sentido de representar o primeiro projeto de continência para o paciente. Cansado de esvair-se em uma angústia sem fim, busca no analista a possibilidade de entender o limite como estruturante, ou ainda, como uma fonte de cuidado, possibilitando assim, dar sentido ou ressignificar sua existência.

Desta forma, a “clínica do olhar” restitui à Psicanálise o lugar do cuidado, uma vez que este pode ser compreendido como uma atitude de ocupação, bem como de um envolvimento afetivo com aquele que deseja sair da vivência da angústia e abrir mão de sua prótese psíquica. Para tanto, faz-se necessário para o analisando que ele se sinta acolhido e compreendido na maneira como vive esta angústia.

Referências:

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